Michel Eyquem de Montaigne
Dos Coxos
Ensaios
Livro
III,
Capítulo 11
Catalogação
na publicação
Biblioteca
de Ciências Humanas e Educação - UFPR
Original:
MONTAIGNE, Michel E. Ouvres completes. Textes établis par Albert Thibaufet et Maurice Rat.
Editions Gallimard, 1962. p. 1002-1013 et 1660-1663.
Equipe
de Tradução: Camila Figueiredo de Freitas, Cinelli Tardioli
Mesquita, Clara Mariana Romanovski, Eduardo de Oliveira Torquete, Eloíza
Botelho, Evandro Felipe Machado, Kamila Cristina Babiuki, , Marcio Zaboti,
Marcus Vinícius Ribinski Bernardo, Rejane Giacomassi, Rodrigo Ponce Santos,
Verônica Ferreira de Miranda, Zoraia Ribeiro dos Santos.
Montaigne,
Michel Eyquem de
Ensaios.
Livro III: Dos Coxos. Oficinas de Tradução. Departamento de Filosofia.
Universidade Federal do Paraná – [Curitiba]: Ed. SCHLA/UFPR, 2012. 22p –
[Traduzindo: Textos filosóficos na sala de aula]
1.
Filosofia. 2. Renascimento 3. Ética 4. Michel de Montaigne
INTRODUÇÃO
Michel
de Montaigne (1533-1592) ficou conhecido por sua obra “Os Ensaios”, escrita
entre 1572 e 1588. Trata-se de 107 ensaios sobre variados assuntos. A
característica mais marcante de sua obra,
que deu a ela o reconhecimento e instigou a curiosidade do público, é a
maneira pessoal do autor filosofar sobre questões clássicas da filosofia como a
natureza do homem, sua capacidade cognitiva e inúmeros temas polêmicos de sua
época, como as guerras de religião.
O interesse pelo conhecimento do homem é um tema clássico da filosofia
desde a Antiguidade até hoje. O Renascimento, momento histórico em que viveu o
filósofo, tem como uma de suas características fundamentais a substituição do
teocentrismo pelo antropocentrismo. Segundo esta oposição histórica, na era
medieval, os intelectuais, principalmente os ligados à Igreja Católica, teriam
colocado Deus no centro do universo. Ou seja, para se compreender o mundo e o
homem, seria preciso primeiro ter o conhecimento contemplativo de Deus e de sua
Palavra. Mas com a teoria heliocêntrica
de Nicolau Copérnico (de que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário)
começa uma crise cultural e religiosa na Europa. Se a Igreja Católica tinha
como um de seus fundamentos o nosso
lugar privilegiado no universo (fundamento amparado pela teoria geocêntrica, de
que o Sol girava em torno da terra, iluminando nossa existência), a nova teoria
espanta os seguidores da Igreja e faz com que a maioria dos intelectuais da
época ou buscassem o conhecimento do homem fora do campo religioso ou questionassem
a religião vigente. Para tanto, principalmente na literatura e nas artes, mas
também na filosofia e outras áreas do conhecimento, os intelectuais
esforçaram-se por fazer renascer as culturas da Antiguidade (grega e romana),
que apesar de muito esquecidas ou deturpadas durante a Idade Média,
conheceriam, segundo os renascentistas, mais da condição humana que a religião
católica. Acreditando, assim, que seria pelo contato com a sabedoria antiga que
o homem conheceria melhor sua natureza, acreditava-se que neste caminho o homem
se aproximaria de sua perfeição e da conquista de sua dignidade. Com esta
crença, a imagem do “homem culto” do Renascimento passa a ligar-se aos seus
conhecimentos do grego e do latim, que lhe possibilitariam o conhecimento direto
dos textos clássicos, sem intervenção ou alteração dos intelectuais ligados à
Igreja.
Além
de a descoberta de Copérnico abalar os dogmas da Igreja Católica, esta já
estava perdendo sua coerência desde o final da Idade Média, pois, apesar de
condenar o lucro e os juros da burguesia, gastava de maneira exorbitante com
bens materiais obtidos principalmente pelas indulgências. Neste contexto, João
Calvino inicia na França um movimento de Reforma da Igreja Católica (1534) que
teria começado na Alemanha com Martinho Lutero (1520). Calvino protestava,
dentre outras coisas, contra a venda de indulgências, pois acreditava que os
homens alcançavam a salvação pelo trabalho, modo de pensar que atraiu muitos
burgueses e trabalhadores que viam no calvinismo uma forma de adequar seu
trabalho à sua espiritualidade.
Entre
1545 e 1563, como reação à Reforma, amedrontados com a perda de muitos fiéis e
temendo perder ainda tantos outros, membros da Igreja Católica reuniram-se,
então, na cidade italiana de Trento, para desenvolverem uma Contra-Reforma que
ficou conhecida como “Concílio de Trento”. Um dos resultados deste concílio foi a volta do “Tribunal do
Santo Ofício”, a chamada “Inquisição”, um modo de inquirir os acusados de
heresia e punir os culpados. Eram chamados “hereges” aqueles que não aceitavam totalmente
a doutrina da Igreja. Esses recebiam punições que iam de torturas até a morte.
Em
1572 (ano em que Montaigne começa a escrever seus Ensaios) a intolerância religiosa que pairava na França culminou no
famoso “Massacre da noite de São Bartolomeu”, que teve início em Paris e se
expandiu para outras cidades francesas, inclusive Bordeaux, a cidade de
Montaigne. Este massacre vitimou milhares de protestantes.
Outro
fato notável que também marcou a Europa renascentista foi a chegada dos
europeus ao que chamaram “Novo Mundo”, as Américas. Com isso, descobriram povos
com modos de vida muito diferentes dos seus, como os indígenas no Brasil. Para
muitos renascentistas, tal descoberta corroborava a ideia da grandiosidade de sua
cultura, o que os levou a chamar, pejorativamente, os novos povos de
“bárbaros”. Com esta presunção, foram enviados inúmeros jesuítas para
catequizar estes novos povos e ensinar-lhes a cultura europeia.
Destacadas
determinadas características gerais do Renascimento - o resgate da cultura
clássica e a intolerância religiosa e cultural
- passemos agora para a
tentativa de compreender algumas características da filosofia de Montaigne e
sua postura frente a seu tempo. Seu pai o fez aprender o latim antes mesmo do
francês e sempre lhe ofereceu os mais cultos preceptores para lhe ensinar a
riqueza dos textos clássicos (Como Cícero, Sêneca, Tito Lívio, Homero, Sexto
Empírico etc.). Ao invés de simplesmente acumular o conhecimento dos mesmos,
como faziam muitos intelectuais de sua época, Montaigne preferia ler os
clássicos e compará-los com sua própria vida. Apesar de fazer várias citações
em latim ou grego dos textos clássicos, muitas vezes ele as tira de seu
contexto de origem, modificando seu sentido, e as aplica ao seu próprio
contexto para esclarecer o que ele quer dizer. Defendia que era necessário
experimentar na própria vida a sabedoria dos antigos, para assim ter, como ele
diz em seu ensaio Da educação das
crianças, não uma “cabeça cheia”, mas uma “cabeça bem feita”, que saiba
julgar a vida da melhor forma possível no instante em que ela é vivida. Desta
forma, Montaigne defende que é preciso estar atento ao conhecimento de si
próprio para poder analisar criticamente os acontecimentos mais polêmicos de
sua época, bem como sua vida mais íntima. Quando Montaigne fala de si mesmo em seus Ensaios ,
buscando mostrar sua opinião sobre diversos assuntos, não se trata de um mero e
vaidoso falar de si mesmo. Escrevendo sobre suas
próprias experiências ou contando casos peculiares, Montaigne não os eleva como
critério seguro para encontrar a verdade, visto que ele confessa notar a
fragilidade de seu próprio julgamento. Desta
forma, quando Montaigne nos escreve sobre suas experiências é sem a pretensão
de instruir os homens em
geral. Seria antes um modo pelo qual o filósofo nos convida a
nos experimentarmos a nós mesmos para não sermos persuadidos e distanciados de
nosso bom senso por alguma autoridade externa que diz possuir a verdade. Mesmo
que pensar por nossas próprias experiências, segundo Montaigne, não nos garanta
a posse da verdade, parece-lhe que este seja o modo mais honesto e seguro de
exercitarmos nosso julgamento. Daí o título de sua obra: Ensaios. Ensaiar significa ao mesmo tempo testar e exercitar, ou seja,
devemos sempre testar nossos conhecimentos, analisar criticamente se eles podem
ser considerados verdadeiros ou não e exercitar nosso julgamento continuamente
para podermos julgar melhor o que encontramos ao nosso redor e em nós mesmos.
O
que Montaigne parece nos mostrar é o fato de que, ao não testarmos nossos
próprios conhecimentos, exercitando nosso julgamento, ficamos mais vulneráveis
a submeter-nos a qualquer autoridade ou nos vermos como tal. No contexto de
Montaigne, podemos pensar na vulnerabilidade de seus contemporâneos ao confiar
cegamente nos representantes da Igreja Católica ou do protestantismo, chegando
até mesmo a morrer ou matar por estas autoridades. E podemos também pensar na
presunção de ver-se como autoridade ao ponto de não aceitar outra cultura que
não a sua, pretendendo dominá-la, “civilizá-la”. Se trouxermos a questão para
nossa realidade, podemos igualmente perceber que muitas vezes confiamos
cegamente nos representantes de uma religião, na mídia, na ciência, nos
professores etc., sem nos perguntarmos se o que afirmam estas autoridades
encerra toda a verdade sobre nossas vidas. Mas é importante destacar que a
questão não é simplesmente negar o que dizem as autoridades (isto seria cair no
erro contrário e igualmente perigoso de ver-se como autoridade), mas
questionar, ver até que ponto elas e nós mesmos estamos realmente com a razão;
pensar nas autoridades ao mesmo tempo em que pensamos em nós mesmos. E uma
utilidade de pensarmos sobre nós mesmos é a ocasião de aprendermos a tolerar o
próximo. Para ilustrar esta ideia, Montaigne, em um ensaio intitulado Dos canibais, relata com horror o ritual dos canibais
encontrados no Brasil que assavam e
comiam seus inimigos depois de assassiná-los em guerra. Mas , depois de
compartilhar com seus conterrâneos o horror que causa esta atitude bárbara,
Montaigne traz a reflexão para sua própria cultura dizendo considerar
barbaridade ainda maior assar um homem vivo (e com a desculpa de ser em nome da
religião, como fazia a Inquisição) do que assá-lo e comê-lo depois de morto,
como fazia este povo recém descoberto. Ou seja, Montaigne parece nos aconselhar
que antes de julgarmos uma autoridade, alguém ou outra cultura, devemos
analisar a nós mesmos e nossa própria cultura. Se, para alguns renascentistas,
a descoberta do Novo Mundo servia para corroborar a ideia da grandeza de sua
civilização, para Montaigne, ao contrário, ela servia para mostrar o quão pouco
se conhecia sobre a condição humana e quanto ainda era preciso tentar
compreendê-la sem pré-julgamentos.
A leitura do ensaio Dos coxos
(escrito aproximadamente em 1585) oferece-nos a oportunidade de avaliarmos como
Montaigne questionava a cultura de sua época e identificarmos algumas
características de sua filosofia.
Encontramos neste ensaio um debate polêmico que ocorria na França
renascentista: a pena de morte para os casos de bruxaria. As chamadas “bruxas”
ou “feiticeiras” estavam incluídas no grupo dos “hereges” ao qual nos referimos
anteriormente, pois, assim como os protestantes, elas também iam contra alguns
preceitos da Igreja. Montaigne, para qualquer tipo de crime, defendia a
exclusão da pena de morte para os casos em que restasse a menor dúvida sobre a
culpa ou o grau de culpa dos réus. Ele possuía ampla experiência de magistrado.
Em 1554 foi conselheiro na Corte de Impostos de Périgueux, em 1557 entrou para
o Parlamento de Bordeaux e, finalmente, de 1562 a 1570 participou do
Parlamento de Paris. Na classe dos magistrados era onde se encontrava a maioria
dos eruditos e escritores do século XVI, e isto provavelmente tenha
influenciado Montaigne a se engajar e debater acerca das leis e suas referentes
aplicações. Também possuía experiência política: foi eleito prefeito de
Bordeaux em 1581 e reeleito em 1583. Apesar de toda esta experiência, ele diz
neste ensaio que defende suas opiniões como um homem comum, querendo nos
mostrar que suas ideias eram compreensíveis para qualquer homem de bom senso e
que qualquer homem em boas condições de julgar veria quanta barbárie poderia
ser justificada tanto pelo orgulho do saber como por um mau uso da religião.
Desta forma, Montaigne faz um elogio ao bom senso, acessível a qualquer homem,
em oposição ao eruditismo vazio que pairava em sua época. Ou seja, defendia que
o valor de suas opiniões estava no constante exercício e exame de seu
julgamento e não em sua facilidade de citar textos clássicos ou em sua
experiência de magistrado.
Mas com quem Montaigne debate neste ensaio?
Apesar de ele não citar nomes, quando diz que as feiticeiras de sua vizinhança
correm risco dependendo da opinião de cada autor, provavelmente debate, entre
outros, com Jean Bodin; mais especificamente, com as ideias presentes em sua obra "Demonomania
dos feiticeiros". Esta obra, publicada em 1580, pretendia provar a existência de feiticeiros
pelas Escrituras, pela experiência e pelo consenso de todos os povos. Baseando-se
nas palavras das Escrituras, ele defendia serem necessários castigos rigorosos
não apenas aos bruxos, mas também a quem se recusasse a crer na feitiçaria. O
que nos leva a nos referirmos à obra "Demonomania
dos feiticeiros" é o
fato de que, no decorrer do texto, Montaigne argumenta contra as três bases de
apoio para a prova de Bodin sobre a existência de feiticeiros. Vale à pena
acompanharmos alguns momentos de sua argumentação:
1) Contra a prova da existência de feiticeiros com base
nas Escrituras, Montaigne argumenta que devemos acreditar na palavra de Deus
quando Ele diz que certos eventos ali narrados são frutos de feitiçaria. Porém,
para compará-los aos eventos de
sua época, diz o filósofo, é necessário
outra inteligência que não a nossa. Ou seja, cabe apenas à inteligência
divina definir e julgar os supostos eventos de feitiçaria, decidir quem é
feiticeiro e quem não o é, e não a nós, que temos uma razão tão humana e,
portanto, incapaz de julgar os fatos sobrenaturais.
2) Contra a prova dada com base na experiência, Montaigne
argumenta em vários momentos do ensaio Dos
Coxos que é possível chegar a conclusões diferentes a partir da mesma experiência.
Mesmo que seja necessária para o conhecimento do mundo e de si mesmo, ela não
garante uma verdade completa sobre o que quer que seja.
3) E contra a prova baseada no consenso de todos os povos
quanto à existência da feitiçaria, Montaigne argumenta que os homens se fazem
acreditar, se não pelo método da argumentação, muitas vezes pela força, pelo
comando e pela ameaça de morte ou tortura. Em outras palavras, Montaigne
acredita que não se deve julgar nada pelo número de crentes, pois estes podem
ter sido forçados, por alguma autoridade, a acreditar no que quer que seja.
Montaigne era católico, mas isso não o impedia de criticar algumas
posturas dos defensores de sua religião. Para ele não era necessário negar uma
autoridade para poder perceber os eventuais problemas que pudéssemos encontrar
nela. Para Montaigne, aqueles que matam ou torturam são apenas cruéis e, como o
homem é incapaz de julgar os fatos sobrenaturais, quando usam como pretexto a
religião, são torturadores da pior espécie, pois se utilizam da ignorância
humana para justificar seus atos injustificáveis. Montaigne acreditava que ser
católico não significava ser cruel, o que era condenável em alguns homens de
sua época era justificarem a crueldade pelo catolicismo. Como vimos, quanto aos
textos clássicos ele não tinha pudor em tirá-los de seu contexto de
origem, chegando a modificá-los e
aplicá-los ao seu próprio contexto. Porém, os textos clássicos foram escritos
por humanos e compreensíveis a qualquer homem, já as palavras das Escrituras
deveriam ser seguidas, segundo ele, não pela razão humana, mas pela fé. Por
isso, tentar racionalmente justificar nossos atos de crueldade pela palavra
divina seria mais um ato de má fé do que um ato religioso.
Mas qual era o motivo de as crueldades serem tão aceitas em sua época?
Neste ensaio, como em Da educação das
crianças, Montaigne fala da importância da educação. Educam-se as crianças
para o saber, quando seria mais adequado ensiná-las a admitir sua ignorância.
Instaurado o desejo de afastar-se da ignorância, cria-se homens fáceis de serem
persuadidos por qualquer opinião – pois, neste caso, o que interessa é
posicionar-se, e a qualquer custo.
Desta forma, Montaigne apropria-se do método de pesquisa do ceticismo
antigo (principalmente o de Cícero e Sexto Empírico). Frente a teorias
divergentes, porém de igual força de convencimento, tais céticos suspendiam o juízo; ou seja, para
eles não seria preciso precipitar-se em escolher alguma delas, mas continuar
pesquisando. Valendo-se deste ceticismo, Montaigne defende que, por mais que autores
como Jean Bodin possam ter bons argumentos (racionalmente aceitáveis e baseados
na experiência), sempre é possível que existam outros tão bons quanto. Sendo
assim, quando Montaigne diz ser contra a pena de morte para os casos em que reste
a menor dúvida quanto à culpa ou grau de
culpa dos réus, ele estaria, no fundo, posicionando-se contra a pena de morte
para qualquer caso; pois, como afirma neste ensaio, matar um homem a partir de
nossas conjecturas tão incertas é pagar um preço muito alto pela vaidade de
nossa sabedoria. Pois o que temos de mais valioso não é nossa racionalidade,
mas nossa própria vida.
Como
não cabe a uma introdução esgotar todas as questões do texto, tentamos aqui
apenas apontar algumas questões que consideramos relevantes para a compreensão
dele. Cabe agora ao leitor buscar mais material no texto para ampliar a
discussão e testar seu próprio julgamento sobre a filosofia, a história e, quem
sabe, sobre si mesmo.
Há dois ou três anos encurtaram o ano em dez dias na França (NOTA 1). Quantas
mudanças deveriam seguir esta reforma! Foi propriamente mover o céu e a terra
ao mesmo tempo. No entanto, nada saiu de seu lugar; meus vizinhos encontram a
hora de semear, de colher, a oportunidade de seus negócios; os dias
prejudiciais e propícios no mesmo lugar de sempre. Não se sentia o erro no
nosso antigo costume e nem se sente a melhoria com essa mudança. Há tanta
incerteza em tudo, nossa percepção é tão grosseira, obscura e obtusa. Dizem
que esse ajuste poderia se conduzir de maneira menos incômoda: eliminando,
segundo o exemplo de Augusto (NOTA
2), durante alguns anos o dia
suplementar dos anos bissextos, que de qualquer maneira é um dia de embaraço
e confusão, até que chegássemos a compensar exatamente essa diferença - o que
nem mesmo foi feito por essa correção, e permanecemos ainda com alguns dias
de atraso. E também, do mesmo modo, poderiam ter se prevenido quanto ao
futuro, organizando, após a decorrência deste ou daquele número de anos, que
este dia extraordinário seria sempre apagado, de tal forma que nosso erro de
cálculo não poderia daí em diante exceder vinte e quatro horas. Não temos
outra medida de tempo que não os anos. Há tantos séculos que o mundo se serve
dessa medida; e mesmo assim ainda não fomos capazes de fixá-la totalmente,
tal que ficamos incertos todos os dias sobre qual forma as outras nações lhe
deram, diferente da nossa, e como costumavam aplicá-la. O que pensar do que
dizem alguns, que os céus se comprimem em nossa direção quando envelhecemos e
nos coloca na incerteza das horas e dos dias? E dos meses, o que diz Plutarco (NOTA 3), que ainda no seu tempo a
astrologia não conseguia determinar o movimento da lua? Em que boa condição
estamos para manter o registro das coisas do passado!
Estava devaneando, como faço frequentemente, sobre como a razão
humana é um instrumento livre e vago. Vejo habitualmente que os homens
ocupam-se mais em buscar a razão dos fatos que lhes são propostos do que em
procurar saber se são verdadeiros. Eles deixam as coisas e se põem a tratar
das causas. Engraçados causadores! O conhecimento das causas pertence somente
àquele que tem o governo das coisas, não a nós que apenas as suportamos e
usamos plenamente de acordo com nossa natureza, sem penetrar sua origem e
essência. Nem o vinho é mais prazeroso àquele que conhece seu processo de
fabricação. Ao contrário, tanto o corpo quanto a alma interrompem e alteram o
direito que têm ao uso do mundo ao mesclarem a pretensão de ciência. O
determinar e o saber, assim como o dar pertencem à regência e à maestria; à
inferioridade, sujeição e aprendizagem, cabe aceitar e apreciar. Voltemos ao
nosso costume. Passamos por cima dos fatos, mas examinamos curiosamente suas
consequências. Habitualmente começamos assim: “Como é que isso acontece?”
Seria preciso antes perguntar: “Mas isso realmente acontece?” Nossa razão é
capaz de criar vários mundos e descobrir-lhes os princípios e a ordenação;
não precisa nem de matéria, nem de fundamento; deixe-a correr: constrói bem
tanto no vazio quanto no pleno, tanto na ausência quanto na presença de
matéria,
dare pondus idonea fumo. [Que dá peso à fumaça.]
Acho que em quase tudo seria preciso dizer: “Não é nada disso” e
usaria frequentemente essa resposta; mas não ouso, pois eles gritam que é uma
fuga produzida por fraqueza de espírito e por ignorância. E
eu me sinto obrigado, na maior parte das vezes, a atuar em conversas que
tratam de assuntos e contos frívolos de que descreio inteiramente. Além disso, em verdade, é um pouco rude e provocativo
negar totalmente algo que é afirmado sobre um fato. E poucas pessoas
deixariam, notadamente com relação às coisas sobre as quais é difícil de se
persuadir, de afirmar o que viram ou de invocar testemunhas cuja autoridade
calaria nossa contestação. Seguindo esse costume, sabemos os
fundamentos e as causas de mil coisas que nunca existiram; e o mundo se
debate em mil questões das quais os prós e os contras são falsos. “Ita finítima sunt falsa veris, ut in praecipitem locum
non debeat se sapiens committere.”
[As coisas falsas são tão parecidas com as verdadeiras que o sábio não deve
se arriscar em terreno tão precipitoso.] (Cícero, Acadêmicos, II,XXI)
A verdade e a mentira têm suas faces conformes, porte, gosto e
aspectos semelhantes: nós as olhamos com os mesmos olhos. Penso que não somos
apenas frouxos em defender-nos do engano, como também procuramos e nos
propomos enredar-nos nele. Gostamos de nos envolver com o que é vão, como
algo conforme ao nosso ser.
Vi
o nascimento de vários milagres na minha época. Ainda que se sufoquem ao
nascer, nós não deixamos de prever o caminho que percorreriam se tivessem
vivido toda a vida. Pois somente é preciso encontrar a ponta do fio para
desenrolarmos o quanto quisermos. E há mais distância entre nada e a menor
coisa do mundo do que há entre esta e a maior. Ora,
os primeiros que são alimentados com esse começo de estranheza, vindo a
semear sua história, sentem, a partir das oposições que lhes são feitas, onde
está a dificuldade da persuasão e vão preenchendo esse lugar com algum dado
falso. Além disso, ‘insita hominibus libidine alendi de
industria rumores” [Pelo prazer inato aos homens de espalhar
rumores.], nós naturalmente hesitamos em devolver o que nos é
emprestado sem algum juro e acréscimo de nossa parte. Primeiramente o erro
particular faz o erro público e depois, por sua vez, o erro público faz o
erro particular. Assim vai toda essa construção, se modelando e formando de
mão em mão; de maneira que a testemunha mais distante é melhor instruída que
a mais próxima, e a última informada é mais persuadida que a primeira. É um
progresso natural. Pois qualquer um que acredite em alguma coisa, considera
que é obra de caridade persuadir um outro disso; e,
para tanto, não teme acrescentar mais da sua invenção, tanto quanto acredite
ser necessário em seu favor, a fim de suprimir a resistência ou falha que
pensa existir na concepção do outro.
Eu
mesmo, que dou singular importância a não mentir e que não me preocupo em dar
credibilidade e autoridade ao que digo, percebo em mim, todavia, quanto aos
propósitos que tenho em mãos, que estando inflamado ou pela resistência de
outro ou pelo próprio calor da narração, aumento e inflo meu assunto por meio
da voz, gestos, vigor e força das palavras e, ainda, por extensão e
amplificação, não sem prejuízo à verdade pura. Mas o faço em tal condição
que, ante o primeiro que me repreende e me pede a verdade nua e crua, deixo
de lado imediatamente meu esforço, e a entrego a ele sem exageros, sem ênfase
e sem enchimento. A fala viva e barulhenta,
como a minha habitualmente é, se entrega voluntariamente à hipérbole.
Não há nada a que comumente os homens sejam mais propensos que
dar vazão a suas opiniões; quando nos falham os meios habituais, adicionamos
o comando, a força, o ferro e o fogo. É uma infelicidade que estejamos
reduzidos a um ponto tal que o melhor critério de verdade seja o imenso
número de crentes, quando o número de tolos na multidão supera em muito o
número de sábios. “Quasi veró quidquam sit tam valdè, quàm
nil sapere vulgare.” [Como se não houvesse algo
tão comum quanto a ausência de bom senso.] (Cícero, De Divin,II, XXXIX) “Sanitatis
patrocinium est, insanientium turba.” [É a defesa da sanidade, pela
multidão insana.] (Santo Agostinho, Cidade de Deus, VI, X). É difícil manter o julgamento contra as opiniões comuns. A primeira
persuasão, extraída do próprio assunto, se apodera dos simples; dali se
expande até os mais hábeis, sob a autoridade do número e antiguidade dos
testemunhos. Quanto a mim, se não acredito em um testemunho, ainda não
acreditarei em cem deles; tampouco julgo as opiniões pela sua idade.
Há
pouco tempo um de nossos príncipes (NOTA 4), a quem a gota fez perder a
beleza natural e a amabilidade, deixou-se persuadir fortemente pelo relato
que se fazia das maravilhosas operações de um sacerdote que, por meio de
palavras e gestos, curava todas as doenças. O príncipe fez uma longa viagem
para ir ao encontro desse sacerdote que, pela força da imaginação,
persuadiu-o e lhe amorteceu as pernas por algumas horas, de tal forma que
obteve delas o serviço que tinham desaprendido há muito tempo. Se a sorte
tivesse acumulado cinco ou seis de tais eventos, eles seriam capazes de dar
vida a este milagre. Encontrou-se, desde então, tanta simplicidade e tão
pouca arte no arquiteto de tais obras que o julgaram indigno sequer de
punição. Como também se faria se a maior parte das coisas fossem estudadas na
sua origem. “Miramur ex intervallo fallentia.” [Admiramos as coisas
cuja distância nos engana.] Assim, à distância
nossa visão frequentemente representa imagens estranhas que desaparecem ao
nos aproximarmos delas. “Numquam ad liquidum fama perducitur.”
[Nunca a fama se atém à verdade.]
É espantoso de quantos vãos começos e frívolas causas nascem
habitualmente tão famosas opiniões; é isso que dificulta a investigação sobre
elas. Pois enquanto procuramos causas e fins fortes e importantes e dignos de
tão grande renome, perdemos as verdades; elas escapam de nossa vista por sua
pequenez. E para a verdade requer-se um
inquiridor muito prudente, atencioso e sutil em tais buscas, imparcial e sem
ideia pré-concebida. Até esse momento, todos esses milagres e eventos
estranhos ocultam-se diante de mim. Não vi no mundo monstro ou milagre mais
explícito que eu mesmo. Habituamo-nos a toda estranheza pelo uso e pelo
tempo; quanto mais convivo comigo e me conheço, mais minha deformidade me
espanta e menos eu me entendo.
O principal direito de dar crédito e divulgar tais acidentes é
reservado à sorte.
Passando anteontem por um vilarejo a duas léguas de minha casa, encontrei o
lugar ainda inflamado por um milagre que acabara de se mostrar falso, pelo
qual a vizinhança havia se interessado por muitos meses e as pessoas das
províncias vizinhas começavam a se agitar e acorrer em grandes grupos de
diferentes condições sociais. Uma noite, um jovem do lugar se divertia em sua
casa imitando a voz de um espírito, pensando somente em desfrutar de uma
brincadeira momentânea. Saindo-se nisso um pouco melhor do que
esperava, para estender sua farsa e impulsioná-la, associou-se a uma moça do
lugar, estúpida e simples; e no final
já eram três, de mesma idade e inteligência semelhante; e de pregações
domésticas passaram a pregações públicas, escondendo-se sob o altar da
igreja, falando apenas à noite e proibindo que se levasse qualquer luz até
lá. De palavras que tendiam à conversão do mundo e da ameaça do dia do
julgamento (assuntos cuja autoridade e reverência escondem melhor a
impostura), chegaram a visões e movimentos que, de tão ingênuos e ridículos,
não se encontraria nada de tão grosseiro nem mesmo em brincadeira de
criancinhas. Contudo, se a sorte quisesse favorecê-los um pouco, quem sabe
até onde os teria levado esse fingimento? Estes pobres diabos estão agora na
prisão e sofrerão provavelmente a pena pela tolice comum; e não sei se algum
juiz não se vingará neles pela sua própria tolice. Neste caso, que foi desvendado, vemos com clareza, mas em
casos semelhantes que ultrapassam o nosso conhecimento, sou da opinião de que
suspendamos nosso juízo, tanto para rejeitar como para aceitar.
Muitos
abusos são gerados no mundo, ou para falar mais audaciosamente, todos os
abusos do mundo são gerados pelo fato de que nos ensinam a ter medo de
assumir a nossa ignorância e somos obrigados a aceitar tudo o que não podemos
refutar. Nós falamos de todas as coisas de forma imperativa e dogmática. O estilo jurídico de Roma determinava que mesmo o
que uma testemunha depusesse ter visto com seus próprios olhos, e que um juiz
decidisse pela sua mais segura ciência, fosse concebido nesta forma de falar:
Parece-me. Fazem-me odiar as coisas verossímeis quando me são apresentadas
como infalíveis. Gosto destas palavras que atenuam e moderam a temeridade de
nossas proposições: por ventura, de modo algum, algum, dizem, penso e etc. E
se eu tivesse tido que educar crianças eu lhes teria ensinado esta forma de
responder, questionadora e não irresoluta: O que isso quer dizer? Eu não o
entendo, poderia ser, é verdade? Antes eles tivessem mantido a forma de
aprendizes aos sessenta anos do que agir como doutores aos dez, como fazem. Se queremos curar
a ignorância, é preciso confessá-la. Iris é filha
de Thaumantis (NOTA 5). O
espanto é fundamento de toda filosofia; a investigação, o progresso; a
ignorância, o fim. Mas em verdade, há alguma
ignorância forte e generosa que não deve nada em honra e coragem à ciência (NOTA
6). E há tanta ciência em conceber essa ignorância como em conceber a
própria ciência.
Vi
em minha infância um processo que Corras, conselheiro de Toulouse, mandou
publicar sobre um estranho incidente de dois homens
que se faziam passar um pelo outro(NOTA
7). Lembro-me (e só disso me lembro) de que me pareceu que Corras julgara
a impostura daquele que ele considerou culpado tão espantosa e excedendo de
tal modo o nosso conhecimento e o seu próprio, como juiz, que considerei
muito ousada a sentença que o condenara à forca. Admitamos – mais livre e
ingenuamente do que fizeram os Areopagitas (NOTA 8) que, achando-se pressionados por uma causa que não podiam explicar,
ordenaram que as partes retornassem após cem anos – uma forma qualquer de
sentença que diga “A corte não está entendendo nada” (NOTA 9).
As
feiticeiras de minha vizinhança correm risco de vida dependendo da opinião de cada novo autor (NOTA 10) que venha a dar corpo aos seus sonhos. Para acomodar os
exemplos que a palavra divina nos oferece de tais coisas, exemplos tão certos
e inquestionáveis, e associá-los a nossos acontecimentos modernos, uma vez
que deles não vemos nem as causas nem os meios, é necessário outra
inteligência que não a nossa. Pode ser que só
caiba ao testemunho do todo-poderoso nos dizer: “Este aqui e esta são e,
aquele não.” Nisso, devemos acreditar em Deus, é de verdade uma boa razão;
porém não um dentre nós, que se espanta com
sua própria narração (e necessariamente ele se espanta com ela, se não
estiver fora de juízo), quer a empregue a atos de outrem, falando de outro
feiticeiro que não ele mesmo, quer a empregue contra si mesmo.
Sou
difícil de convencer e me apego um pouco ao concreto e ao verossímil,
evitando as antigas reprovações: “Majorem fidem homines adhibent iis qua non
intelligun.” [Os homens dão mais fé àquilo que não compreendem.] _
“Cupidine humani ingenii libentius obscura creduntur.” [Uma tendência
natural da mente humana a crer em coisas obscuras.] Vejo bem que nos
enfurecemos e que me proíbem de duvidar dessas coisas sob pena de injúrias
execráveis. Nova forma de persuadir! Graças a
Deus, minha crença não se maneja a socos. Que
censurem aqueles que acusam sua opinião de falsidade;
eu a acuso somente de ousadia e de ser difícil de se acreditar, e
condeno a afirmação oposta, assim como eles o fazem, senão tão imperiosamente
quanto eles. Videantur sane, ne affirmentur modo. [Que estas coisas sejam
propostas como prováveis, mas que de modo algum sejam afirmadas.] (Cícero, Questões Acadêmicas, II,XXVII.) Quem
estabelece seu discurso como um desafio e como um comando, mostra que sua
razão é fraca. Em uma disputa verbal e escolástica, talvez eles tenham tanta aparência de razão quanto seus
objetores; mas na consequência efetiva que
tiram disso, estes últimos têm mais vantagem. Para matar as pessoas é preciso
uma clareza luminosa e limpa sobre seus atos; e nossa vida é demasiadamente
real e essencial para servir de garantia a esses eventos sobrenaturais e
fantásticos. Quanto a drogas e venenos, eu os
coloco fora de minha consideração: são homicídios, e da pior espécie (NOTA 11). No entanto, mesmo nisso
dizemos que nem sempre é preciso ater-se à confissão dos feiticeiros porque
os vimos, às vezes, confessar haver matado pessoas que se encontravam
saudáveis e vivas.
Nessas
outras acusações extravagantes, eu diria que é bem razoável que um homem, não
importando sua reputação, seja acreditado naquilo que é humano; quanto ao que
está fora de seu entendimento e é um efeito sobrenatural, somente deve ser
acreditado quando uma autoridade sobrenatural o aprovar. Este privilégio que
Deus consentiu em dar a alguns de nossos testemunhos não deve ser aviltado e
comunicado levianamente. Tenho os ouvidos cansados de mil histórias: três
pessoas viram alguém em determinado dia no lado nascente; três o viram no dia
seguinte no ocidente, a determinada hora, em determinado lugar, vestido
assim. Certamente nem eu acreditaria em mim mesmo. Quanto a mim, penso ser
mais natural e mais verossímel que dois homens mintam que um só passe em doze
horas do oriente ao ocidente como o vento! Quanto mais natural é nosso
entendimento ser levado pela volúpia de nosso espírito desequilibrado, que um
de nós ser carregado, em carne e osso, sobre uma vassoura ao longo de uma chaminé
por um espírito estranho! Não procuremos ilusões de fora e desconhecidas;
nós, que somos perpetuamente agitados por nossas próprias ilusões domésticas.
Parece-me que é perdoável não acreditar no sobrenatural, ao menos na medida
em que seja possível desviar e evitar a sua verificação por meio natural. E
sou da opinião de Santo Agostinho, de que vale mais tender para a dúvida que
para a certeza nas coisas de difícil comprovação e crença perigosa.
Há
alguns anos, passei pelas terras de um príncipe soberano, o qual, em meu
favor e para abater a minha descrença, concedeu-me a graça de me fazer ver em
sua presença, em lugar particular, dez ou doze prisioneiros dessa natureza, e
entre outros uma velha, realmente bruxa em feiúra e deformidade, muito famosa
de longa data nessa profissão. Vi provas e livres confissões e uma tal marca
insensível naquela velha miserável, a tal marca de
Satã (NOTA 12), e perguntei
e falei tudo o que quis, prestando atenção nisso o mais que podia; e não sou
o tipo de homem que deixa o juízo preso a preconceitos. No final e em plena
consciência, eu lhes teria antes receitado heléboro
que cicuta. (NOTA 13) “Captisque
res magis mentibus, quám consceleratis similis visa.” [O caso deles
me parecia mais próximo da loucura que do crime.] (Tito Lívio, VIII, XVIII). A
justiça tem suas próprias correções para tais doenças.
Quanto
às objeções e aos argumentos que homens honestos me apresentaram, aqui e
frequentemente em outros lugares, nada ouvi que me tenha convencido e que não
admita solução mais verossímel que suas conclusões. É verdade que eu não
desato as provas e razões que se fundamentam na experiência e no fato; também
elas não têm ponta; eu as corto frequentemente, como
Alexandre cortou seu nó (NOTA
14). Afinal de contas, cozinhar um homem
vivo com base em suas conjecturas é dar valor demasiado a elas. Narram-se
diversos exemplos, e Prestâncio conta o de seu pai, que, entorpecido e
adormecido mais profundamente que um sono normal, fantasiou ser um jumento e
servir de burro de carga a soldados. E o que fantasiava o era. Se os feiticeiros sonham assim materialmente, se às
vezes os sonhos podem de fato incorporar-se, ainda não creio que nossa
vontade deva responder por isso perante a justiça.
O
que digo, eu o faço como alguém que não é juiz nem conselheiro de reis, e que
não se considera digno de o ser, mas sim um homem do povo, nascido e criado
para obedecer à razão pública, tanto em seus feitos como em seus ditos. Quem levasse em conta meus devaneios, em prejuízo
da mais mísera lei de seu vilarejo, ou opinião, ou costume, faria tão grande
mal a si quanto a mim. Porque não dou garantia do que digo, senão de que é
isso o que tinha naquele instante em meu pensamento, pensamento desordenado e
vacilante. É pela conversa que falo de tudo e falo sobre nada por meio de
opiniões. “Nec me pudet, ut istos, fateri nescire quod nesciam.” [Eu não
tenho vergonha, como essas pessoas, de confessar que ignoro o que ignoro.] Eu
não seria tão ousado no falar se me coubesse ser acreditado; e foi isto o que
respondi a um grande que se lamentava da aspereza e do ardor de minhas
exortações: Sentindo-te inclinado e preparado de uma parte, exponho-te a
outra com todo o cuidado que posso, para esclarecer o teu julgamento, não
para amarrá-lo; Deus sustenta teus sentimentos e te fornecerá escolhas. Não
sou tão presunçoso a ponto de desejar que apenas minhas opiniões inclinem
para algo de tamanha importância – minha sorte não as endereçou a tão
poderosas e elevadas decisões. É verdade que não tenho apenas modos de ser em
grande número, mas também opiniões em excesso, das quais pouparia meu filho,
se o tivesse. Que mais dizer, se as mais verdadeiras não são sempre as mais
acomodadas ao homem, tão selvagem é sua composição!
(NOTA 15)
A
propósito ou fora de propósito, não importa, diz-se na Itália, um provérbio
comum, que não conhece Vênus em sua perfeita doçura aquele que não se deitou
com uma manca. O acaso, ou algum evento particular, colocou há muito tempo
essas palavras na boca do povo; e isso se diz tanto dos machos como das
fêmeas. Pois a rainha das amazonas respondeu ao cita que a convidava ao amor:
[Το αβάσιμο και ο οποίος κάνει καλύτερα],”o manco o faz
melhor” (Erasmo,
Adágios, II, IX,49). Naquela república feminina, para fugir da dominação
dos machos, elas os aleijavam desde crianças, braços, pernas e outros membros
que lhes dessem vantagens sobre elas; e serviam-se deles somente do que nós
aqui nos servimos delas. Eu teria dito que o movimento irregular da mulher
manca traz um novo prazer à tarefa e alguma ponta de doçura àqueles que a
experimentam, mas acabo de saber que mesmo a filosofia antiga já tinha
decidido: como as pernas e coxas das mancas não recebem, devido à sua
imperfeição, o alimento que lhes é devido, as partes genitais que estão acima
tornam-se mais cheias, nutridas e vigorosas. Ou
então que, como esse defeito impede o exercício, os coxos dispensam menos
força e chegam com mais vigor aos jogos de Vênus. É
também a razão pela qual os gregos descreviam as tecelãs como mais fogosas
que as outras mulheres: devido ao trabalho sedentário que faziam, sem grande
exercício físico. A este preço, do que não
podemos falar? Sobre estas se poderá ainda
dizer que o estremecimento que o seu trabalho lhes dá, assim sentadas, as
desperta e solicita assim como fazem o movimento e o tremor das carruagens
com as damas.
Esses
exemplos não podem servir ao que eu dizia no início? Que as nossas razões
antecipam frequentemente o fato, e têm a extensão de sua jurisdição tão infinita que elas
julgam e se exercem mesmo na inanidade e sobre o não-ser? Além da
flexibilidade de nossa invenção para forjar razões para todo tipo de
fantasias, nossa imaginação tem igualmente facilidade para receber impressões
da falsidade por aparências bem frívolas. Pois somente pela autoridade do uso
antigo e popular desse provérbio fui antes levado a crer que recebi mais
prazer de uma mulher porque ela era deformada, o que pus na conta de suas
graças.
Torquato
Tasso, na comparação que faz entre França e Itália, diz ter notado isto, que
temos as pernas mais finas que as dos cavalheiros italianos, e atribui a
causa disso ao fato de que estamos continuamente a cavalo; com base no mesmo
fato, Suetônio tira uma conclusão totalmente contrária: pois ele diz, ao
inverso, que Germânico engrossou as suas pela continuação do mesmo exercício. Não há nada tão maleável e desregrado quanto nosso
entendimento: é o sapato de Terâmenes, bom
para todos os pés (NOTA 16). E ele
é duplo e diverso, e as matérias, duplas e diversas. “Dá-me uma dracma de
prata”, dizia um filósofo cínico a Antígono. “Não é um presente de rei”,
respondeu Antígono. “Dá-me então um talento”, pediu o cínico. “Não é presente
para um cínico”, replicou Antígono.
Seu
plures calor ille vias et caeca relaxat
Spiramenta,
novas veniat qua succus in herbas;
Seu
durat magis et venas astringit hiantes,
Ne
tenues pluviae, rapidive potentia solis
Acrior,
aut Boreae penetrabile frigus adurat.
[Seja
que
este calor abra novos caminhos e poros secretos por onde sobe a seiva nas
ervas novas, seja que ele torne a terra mais dura e estreite suas veias, e
assim a protege contra as chuvas
finas, contra os ardores do sol ou contra o frio penetrante do Boreal.] (Virgílio,
Georg., I, 89.)
“Ogni medaglia ha il suo riverso”. [Toda
medalha tem seu reverso.] Eis por que Clitômaco dizia antigamente que
Carnéades tinha superado os trabalhos de Hércules, por ter arrancado dos
homens o consentimento, isto é, a opinião e a leviandade de julgar. Essa
fantasia de Carnéades, tão vigorosa, nascera antigamente, na minha opinião,
em razão do cinismo daqueles que fazem profissão de saber e de suas
pretensões desmedidas. Colocaram Esopo à venda juntamente com dois outros
escravos. O comprador perguntou ao primeiro destes o que sabia fazer; ele,
para valorizar-se, respondeu montes e maravilhas, que sabia isto e aquilo; o
segundo respondeu de si tanto ou mais; quando chegou a vez de Esopo e lhe
perguntaram também o que sabia fazer: “nada, pois esses aí já fizeram tudo;
eles sabem tudo”, respondeu. Assim aconteceu na escola da Filosofia: o
orgulho daqueles que atribuíam ao espírito humano a capacidade de todas as
coisas causou em outros, por despeito e rivalidade, a opinião de que não se é
capaz de nada. Alguns sustentam com base na ignorância este mesmo extremismo
que outros sustentam na ciência – e fazem isso a fim de não podermos negar
que o homem é imoderado em tudo e que
seu limite é apenas o da necessidade e impotência de ir além.
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NOTA 1
A
mudança do calendário Juliano ou antigo para o calendário Gregoriano ou
moderno, promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582 , não teve lugar ao mesmo
tempo em todo o mundo, o que causa uma certa confusão na harmonização de
datas e na datação de eventos entre os séculos XVI e XX. Para implantação do
novo calendário na
França, foram omitidos dez dias: 9 de Dezembro de 1582 foi seguido de 20 de
Dezembro de 1582.NOTA 2
O calendário Juliano foi modificado no ano 8 d.C. pelo imperador
romano Augusto, que alterou a regra de inclusão do dia extra, de três em três
para quatro em quatro anos.
NOTA 3
Plutarco (46 a 126 d.C.), filósofo e
prosador grego que
estudou na Academia de Atenas (fundada por Platão)
afirmou:“Mas não devemos seguir o cálculo exato do
número de dias, nem fazer deduções ou aproximações; considerando que, mesmo
agora, quando a astronomia já fez tanto progresso, a irregularidade dos
movimentos da Lua está ainda além das habilidades dos matemáticos, e continua
a iludir os seus cálculos.” (Plutarco, Moralia, Questões Romanas, 24,
269D).
Movimentos da Lua:
Sabemos hoje que a
Lua, assim como a Terra, possui um movimento de rotação (em torno de seu
eixo) e translação (em torno do Sol). O período de rotação da Lua é igual ao
período de translação – 27 dias. Sempre vemos a mesma face, pois a outra é
chamada de face escondida. As fases da Lua (cheia, minguante, nova e
crescente) são contadas em períodos de uma semana e às quatro fases juntas
denomina-se período lunar – quase um mês – nosso calendário está baseado na
Astronomia. As fases explicam-se pela posição relativa do Sol, da Terra e da
Lua.
Os
meses: Sua origem em quase todos os
calendários foi as fases lunares. Inicialmente os meses tinham 28 ou 29 dias,
mas isso fazia com que o ano tivesse 12,5 meses o que dificultava um
agrupamento coerente. Assim, os meses deixaram de ter exatamente o número de
dias das fases lunares para que o ano tivesse sempre 12 meses. O mês de fevereiro foi o único a ser preservado
para coincidir com o número de dias das quatro fases lunares.
NOTA 4
M. de Nemours, sobrinho de Louise de Sabóia, morto em 1585 e
doente de gota desde os trinta e seis anos.
NOTA 5
Na mitologia grega, Thaumantis ou Thaumas é o centauro, pai de
Iris. Thaumas significa espanto, admiração. Iris, é a mensageira dos deuses e
tem o significado de verdade. A verdade é filha do espanto, da admiração.
(Ver PLATÃO, Teeteto. Livro
XI,155d)
NOTA 6
“Ciência”– Não no sentido de saber especializado ou
sistematizado, mas de saberes em geral.
NOTA 7
Martin
Guerre, um camponês francês do século XVI, foi personagem central de um
célebre caso de impostura; um homem chamado Arnaud du Tihl, sósia de Martin
Guerre, aproveitou-se de uma longa ausência deste para tomar seu lugar,
vivendo com sua esposa e filhos por três anos. O falso Guerre foi levado a
julgamento, soube responder todas as questões que lhe foram impostas – mesmo
as mais íntimas – e foi executado, uma vez que o verdadeiro Martin Guerre
retornara à cidade durante o processo. Jean de Corras, membro do parlamento
de Toulouse na época, concluiu: “Há grandes razões para pensar que ele [o
falso Guerre] tivera um espírito familiar”. O caso continua a ser estudado e
dramatizado até hoje.
Curiosidade: há um filme de
1982 que retrata o caso; “Le retour de Martin Guerre” (“O Retorno de Martin
Guerre”), dirigido por Daniel Vigne, que traz Gérard Depardieu no papel
principal.
NOTA 8
“Juízes do Areópago”: O Areópago era um tribunal de Atenas
situado numa colina consagrada a Marte. Diz-se que foi nesse tribunal que
primeiro se aplicou a pena de morte. O tribunal se reunia ao ar livre, à
noite. Segundo
os juízes, assim o acusado não se intimidava com a sua imponente gravidade, e
eles não eram influenciados pelas lágrimas e arrependimento. Para que os
ouvidos fossem preservados como os olhos, nenhum artifício oratório era
permitido para enternecer ou comover. A princípio os acusados defendiam a
própria causa. Mais tarde, e para suprir a insuficiência dos seus meios,
foi-lhes permitido defensores, mas estes deviam limitar-se a expor
simplesmente os fatos sem apelar para a comiseração e a piedade. A
integridade desse tribunal era tal que nunca houve qualquer suspeita e nunca
um acusado murmurou contra as suas sentenças.
Durante o
período democrático, o Areópago cumpria a função de um tribunal constituído
por Arcontes que era responsável pelos julgamentos dos crimes de homicídio
premeditado, envenenamento e incêndio, dentre outros.
NOTA 9
O Areópago de Atenas teve que julgar um caso em que a esposa assassinou
seu segundo marido. Este, com a ajuda de seu filho, teria assassinado o filho
do primeiro casamento da esposa. Sem saber como penalizar as partes, o
areópago ordenou que todos voltassem vivos ao tribunal cem anos depois. (Esse
se tornou um exemplo clássico de casus
perplexus, um caso de dificuldade moral
máxima.)
NOTA 10
As obras de demonologia traziam estudos
sistemáticos sobre os demônios. Provavelmente essa passagem é uma referência
à obra "Demonomania dos feiticeiros" (1580), de Jean Bodin, que
defendia a enérgica repressão à feitiçaria.
NOTA 11
As
obras de demonologia discutiam o sentido exato de uma passagem específica do
livro do Êxodo, XXII, 18 : <<Maleficos
non patieris viuere>>; alguns, como Jean Wier (Histórias, discursos e disputas das
ilusões e imposturas dos diabos, VI, XXIV), se apoiando na versão
grega do livro para sustentar que a lei visava os envenenadores. Montaigne
reconhece a plena culpabilidade dos envenenadores. A questão, aqui, reside em
saber se existem bruxas, propriamente ditas, e se está ao alcance da
inteligência humana o poder de identificá-las.
NOTA
12
Teóricos da bruxaria afirmavam que ter uma
marca insensível a agulhas e picadas no corpo confirmava a possessão do
demônio. Esse sinal era buscado nos acusados de bruxaria.
NOTA
13
”Heléboro”: planta que curava a loucura,
segundo crença antiga. “Cicuta”: planta venenosa
NOTA
14
Nesta passagem Montaigne refere-se ao nó do
templo de Górdio, impossível de
dasatar segundo a lenda que remonta ao século VIII a.C. Quem o desatasse
conquistaria a Ásia Menor. Alexandre – O Grande (
NOTA
15
“Selvagem composição”: comportamento imprevisível,
irregular e impulsivo do homem com relação às opiniões verdadeiras.
NOTA
16
”Sapato de
Terâmenes”: metáfora de um calçado adaptável tanto ao pé direito quanto ao
esquerdo, utilizada para exemplificar a capacidade de adaptar-se às
circunstâncias.
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