quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Michel Eyquem de Montaigne
                                             
   Dos Coxos
      Ensaios
         Livro III,
         Capítulo 11 


Catalogação na publicação
Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR



Original:

MONTAIGNE, Michel E. Ouvres completes. Textes établis par Albert Thibaufet et Maurice Rat. Editions Gallimard, 1962. p. 1002-1013 et 1660-1663. 


Equipe de Tradução: Camila Figueiredo de Freitas, Cinelli Tardioli Mesquita, Clara Mariana Romanovski, Eduardo de Oliveira Torquete, Eloíza Botelho, Evandro Felipe Machado, Kamila Cristina Babiuki, , Marcio Zaboti, Marcus Vinícius Ribinski Bernardo, Rejane Giacomassi, Rodrigo Ponce Santos, Verônica Ferreira de Miranda, Zoraia Ribeiro dos Santos.

Montaigne, Michel Eyquem de

Ensaios. Livro III: Dos Coxos. Oficinas de Tradução. Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Paraná – [Curitiba]: Ed. SCHLA/UFPR, 2012. 22p – [Traduzindo: Textos filosóficos na sala de aula]


1. Filosofia. 2. Renascimento 3. Ética 4. Michel de Montaigne 



INTRODUÇÃO

Michel de Montaigne (1533-1592) ficou conhecido por sua obra “Os Ensaios”, escrita entre 1572 e 1588. Trata-se de 107 ensaios sobre variados assuntos. A característica mais marcante de sua obra,  que deu a ela o reconhecimento e instigou a curiosidade do público, é a maneira pessoal do autor filosofar sobre questões clássicas da filosofia como a natureza do homem, sua capacidade cognitiva e inúmeros temas polêmicos de sua época, como as guerras de religião.
O interesse pelo conhecimento do homem é um tema clássico da filosofia desde a Antiguidade até hoje. O Renascimento, momento histórico em que viveu o filósofo, tem como uma de suas características fundamentais a substituição do teocentrismo pelo antropocentrismo. Segundo esta oposição histórica, na era medieval, os intelectuais, principalmente os ligados à Igreja Católica, teriam colocado Deus no centro do universo. Ou seja, para se compreender o mundo e o homem, seria preciso primeiro ter o conhecimento contemplativo de Deus e de sua Palavra.  Mas com a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico (de que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário) começa uma crise cultural e religiosa na Europa. Se a Igreja Católica tinha como um de seus fundamentos  o nosso lugar privilegiado no universo (fundamento amparado pela teoria geocêntrica, de que o Sol girava em torno da terra, iluminando nossa existência), a nova teoria espanta os seguidores da Igreja e faz com que a maioria dos intelectuais da época ou buscassem o conhecimento do homem fora do campo religioso ou questionassem a religião vigente. Para tanto, principalmente na literatura e nas artes, mas também na filosofia e outras áreas do conhecimento, os intelectuais esforçaram-se por fazer renascer as culturas da Antiguidade (grega e romana), que apesar de muito esquecidas ou deturpadas durante a Idade Média, conheceriam, segundo os renascentistas, mais da condição humana que a religião católica. Acreditando, assim, que seria pelo contato com a sabedoria antiga que o homem conheceria melhor sua natureza, acreditava-se que neste caminho o homem se aproximaria de sua perfeição e da conquista de sua dignidade. Com esta crença, a imagem do “homem culto” do Renascimento passa a ligar-se aos seus conhecimentos do grego e do latim, que lhe possibilitariam o conhecimento direto dos textos clássicos, sem intervenção ou alteração dos intelectuais ligados à Igreja.
Além de a descoberta de Copérnico abalar os dogmas da Igreja Católica, esta já estava perdendo sua coerência desde o final da Idade Média, pois, apesar de condenar o lucro e os juros da burguesia, gastava de maneira exorbitante com bens materiais obtidos principalmente pelas indulgências. Neste contexto, João Calvino inicia na França um movimento de Reforma da Igreja Católica (1534) que teria começado na Alemanha com Martinho Lutero (1520). Calvino protestava, dentre outras coisas, contra a venda de indulgências, pois acreditava que os homens alcançavam a salvação pelo trabalho, modo de pensar que atraiu muitos burgueses e trabalhadores que viam no calvinismo uma forma de adequar seu trabalho à sua espiritualidade.
Entre 1545 e 1563, como reação à Reforma, amedrontados com a perda de muitos fiéis e temendo perder ainda tantos outros, membros da Igreja Católica reuniram-se, então, na cidade italiana de Trento, para desenvolverem uma Contra-Reforma que ficou conhecida como “Concílio de Trento”. Um dos resultados  deste concílio foi a volta do “Tribunal do Santo Ofício”, a chamada “Inquisição”, um modo de inquirir os acusados de heresia e punir os culpados. Eram chamados “hereges” aqueles que não aceitavam totalmente a doutrina da Igreja. Esses recebiam punições que iam de torturas até a morte.
Em 1572 (ano em que Montaigne começa a escrever seus Ensaios) a intolerância religiosa que pairava na França culminou no famoso “Massacre da noite de São Bartolomeu”, que teve início em Paris e se expandiu para outras cidades francesas, inclusive Bordeaux, a cidade de Montaigne. Este massacre vitimou milhares de protestantes.
Outro fato notável que também marcou a Europa renascentista foi a chegada dos europeus ao que chamaram “Novo Mundo”, as Américas. Com isso, descobriram povos com modos de vida muito diferentes dos seus, como os indígenas no Brasil. Para muitos renascentistas, tal descoberta corroborava a ideia da grandiosidade de sua cultura, o que os levou a chamar, pejorativamente, os novos povos de “bárbaros”. Com esta presunção, foram enviados inúmeros jesuítas para catequizar estes novos povos e ensinar-lhes a cultura europeia.  
Destacadas determinadas características gerais do Renascimento - o resgate da cultura clássica e a intolerância religiosa e cultural  -   passemos agora para a tentativa de compreender algumas características da filosofia de Montaigne e sua postura frente a seu tempo. Seu pai o fez aprender o latim antes mesmo do francês e sempre lhe ofereceu os mais cultos preceptores para lhe ensinar a riqueza dos textos clássicos (Como Cícero, Sêneca, Tito Lívio, Homero, Sexto Empírico etc.). Ao invés de simplesmente acumular o conhecimento dos mesmos, como faziam muitos intelectuais de sua época, Montaigne preferia ler os clássicos e compará-los com sua própria vida. Apesar de fazer várias citações em latim ou grego dos textos clássicos, muitas vezes ele as tira de seu contexto de origem, modificando seu sentido, e as aplica ao seu próprio contexto para esclarecer o que ele quer dizer. Defendia que era necessário experimentar na própria vida a sabedoria dos antigos, para assim ter, como ele diz em seu ensaio Da educação das crianças, não uma “cabeça cheia”, mas uma “cabeça bem feita”, que saiba julgar a vida da melhor forma possível no instante em que ela é vivida. Desta forma, Montaigne defende que é preciso estar atento ao conhecimento de si próprio para poder analisar criticamente os acontecimentos mais polêmicos de sua época, bem como sua vida mais íntima. Quando Montaigne fala de si mesmo em seus Ensaios, buscando mostrar sua opinião sobre diversos assuntos, não se trata de um mero e vaidoso falar de si mesmo. Escrevendo sobre suas próprias experiências ou contando casos peculiares, Montaigne não os eleva como critério seguro para encontrar a verdade, visto que ele confessa notar a fragilidade de seu próprio julgamento. Desta forma, quando Montaigne nos escreve sobre suas experiências é sem a pretensão de instruir os homens em geral. Seria antes um modo pelo qual o filósofo nos convida a nos experimentarmos a nós mesmos para não sermos persuadidos e distanciados de nosso bom senso por alguma autoridade externa que diz possuir a verdade. Mesmo que pensar por nossas próprias experiências, segundo Montaigne, não nos garanta a posse da verdade, parece-lhe que este seja o modo mais honesto e seguro de exercitarmos nosso julgamento. Daí o título de sua obra: Ensaios. Ensaiar significa ao mesmo tempo testar e exercitar, ou seja, devemos sempre testar nossos conhecimentos, analisar criticamente se eles podem ser considerados verdadeiros ou não e exercitar nosso julgamento continuamente para podermos julgar melhor o que encontramos ao nosso redor e em nós mesmos.
O que Montaigne parece nos mostrar é o fato de que, ao não testarmos nossos próprios conhecimentos, exercitando nosso julgamento, ficamos mais vulneráveis a submeter-nos a qualquer autoridade ou nos vermos como tal. No contexto de Montaigne, podemos pensar na vulnerabilidade de seus contemporâneos ao confiar cegamente nos representantes da Igreja Católica ou do protestantismo, chegando até mesmo a morrer ou matar por estas autoridades. E podemos também pensar na presunção de ver-se como autoridade ao ponto de não aceitar outra cultura que não a sua, pretendendo dominá-la, “civilizá-la”. Se trouxermos a questão para nossa realidade, podemos igualmente perceber que muitas vezes confiamos cegamente nos representantes de uma religião, na mídia, na ciência, nos professores etc., sem nos perguntarmos se o que afirmam estas autoridades encerra toda a verdade sobre nossas vidas. Mas é importante destacar que a questão não é simplesmente negar o que dizem as autoridades (isto seria cair no erro contrário e igualmente perigoso de ver-se como autoridade), mas questionar, ver até que ponto elas e nós mesmos estamos realmente com a razão; pensar nas autoridades ao mesmo tempo em que pensamos em nós mesmos. E uma utilidade de pensarmos sobre nós mesmos é a ocasião de aprendermos a tolerar o próximo. Para ilustrar esta ideia, Montaigne, em um ensaio intitulado Dos canibais,  relata com horror o ritual dos canibais encontrados no Brasil que  assavam e comiam seus inimigos depois de assassiná-los em guerra. Mas, depois de compartilhar com seus conterrâneos o horror que causa esta atitude bárbara, Montaigne traz a reflexão para sua própria cultura dizendo considerar barbaridade ainda maior assar um homem vivo (e com a desculpa de ser em nome da religião, como fazia a Inquisição) do que assá-lo e comê-lo depois de morto, como fazia este povo recém descoberto. Ou seja, Montaigne parece nos aconselhar que antes de julgarmos uma autoridade, alguém ou outra cultura, devemos analisar a nós mesmos e nossa própria cultura. Se, para alguns renascentistas, a descoberta do Novo Mundo servia para corroborar a ideia da grandeza de sua civilização, para Montaigne, ao contrário, ela servia para mostrar o quão pouco se conhecia sobre a condição humana e quanto ainda era preciso tentar compreendê-la sem pré-julgamentos.
A leitura do ensaio Dos coxos (escrito aproximadamente em 1585) oferece-nos a oportunidade de avaliarmos como Montaigne questionava a cultura de sua época e identificarmos algumas características de sua filosofia.
Encontramos neste ensaio um debate polêmico que ocorria na França renascentista: a pena de morte para os casos de bruxaria. As chamadas “bruxas” ou “feiticeiras” estavam incluídas no grupo dos “hereges” ao qual nos referimos anteriormente, pois, assim como os protestantes, elas também iam contra alguns preceitos da Igreja. Montaigne, para qualquer tipo de crime, defendia a exclusão da pena de morte para os casos em que restasse a menor dúvida sobre a culpa ou o grau de culpa dos réus. Ele possuía ampla experiência de magistrado. Em 1554 foi conselheiro na Corte de Impostos de Périgueux, em 1557 entrou para o Parlamento de Bordeaux e, finalmente, de 1562 a 1570 participou do Parlamento de Paris. Na classe dos magistrados era onde se encontrava a maioria dos eruditos e escritores do século XVI, e isto provavelmente tenha influenciado Montaigne a se engajar e debater acerca das leis e suas referentes aplicações. Também possuía experiência política: foi eleito prefeito de Bordeaux em 1581 e reeleito em 1583. Apesar de toda esta experiência, ele diz neste ensaio que defende suas opiniões como um homem comum, querendo nos mostrar que suas ideias eram compreensíveis para qualquer homem de bom senso e que qualquer homem em boas condições de julgar veria quanta barbárie poderia ser justificada tanto pelo orgulho do saber como por um mau uso da religião. Desta forma, Montaigne faz um elogio ao bom senso, acessível a qualquer homem, em oposição ao eruditismo vazio que pairava em sua época. Ou seja, defendia que o valor de suas opiniões estava no constante exercício e exame de seu julgamento e não em sua facilidade de citar textos clássicos ou em sua experiência de magistrado.
 Mas com quem Montaigne debate neste ensaio? Apesar de ele não citar nomes, quando diz que as feiticeiras de sua vizinhança correm risco dependendo da opinião de cada autor, provavelmente debate, entre outros, com Jean Bodin; mais especificamente, com as ideias presentes em  sua obra "Demonomania dos feiticeiros". Esta obra, publicada em 1580,  pretendia provar a existência de feiticeiros pelas Escrituras, pela experiência e pelo consenso de todos os povos. Baseando-se nas palavras das Escrituras, ele defendia serem necessários castigos rigorosos não apenas aos bruxos, mas também a quem se recusasse a crer na feitiçaria. O que nos leva a nos referirmos à obra "Demonomania dos feiticeiros"  é o fato de que, no decorrer do texto, Montaigne argumenta contra as três bases de apoio para a prova de Bodin sobre a existência de feiticeiros. Vale à pena acompanharmos alguns momentos de sua argumentação:
1)     Contra a prova da existência de feiticeiros com base nas Escrituras, Montaigne argumenta que devemos acreditar na palavra de Deus quando Ele diz que certos eventos ali narrados são frutos de feitiçaria. Porém, para compará-los aos eventos de sua época, diz o filósofo, é necessário outra inteligência que não a nossa. Ou seja, cabe apenas à inteligência divina definir e julgar os supostos eventos de feitiçaria, decidir quem é feiticeiro e quem não o é, e não a nós, que temos uma razão tão humana e, portanto, incapaz de julgar os fatos sobrenaturais.
2)     Contra a prova dada com base na experiência, Montaigne argumenta em vários momentos do ensaio Dos Coxos que é possível chegar a conclusões diferentes a partir da mesma experiência. Mesmo que seja necessária para o conhecimento do mundo e de si mesmo, ela não garante uma verdade completa sobre o que quer que seja.
3)     E contra a prova baseada no consenso de todos os povos quanto à existência da feitiçaria, Montaigne argumenta que os homens se fazem acreditar, se não pelo método da argumentação, muitas vezes pela força, pelo comando e pela ameaça de morte ou tortura. Em outras palavras, Montaigne acredita que não se deve julgar nada pelo número de crentes, pois estes podem ter sido forçados, por alguma autoridade, a acreditar no que quer que seja.
Montaigne era católico, mas isso não o impedia de criticar algumas posturas dos defensores de sua religião. Para ele não era necessário negar uma autoridade para poder perceber os eventuais problemas que pudéssemos encontrar nela. Para Montaigne, aqueles que matam ou torturam são apenas cruéis e, como o homem é incapaz de julgar os fatos sobrenaturais, quando usam como pretexto a religião, são torturadores da pior espécie, pois se utilizam da ignorância humana para justificar seus atos injustificáveis. Montaigne acreditava que ser católico não significava ser cruel, o que era condenável em alguns homens de sua época era justificarem a crueldade pelo catolicismo. Como vimos, quanto aos textos clássicos ele não tinha pudor em tirá-los de seu contexto de origem,  chegando a modificá-los e aplicá-los ao seu próprio contexto. Porém, os textos clássicos foram escritos por humanos e compreensíveis a qualquer homem, já as palavras das Escrituras deveriam ser seguidas, segundo ele, não pela razão humana, mas pela fé. Por isso, tentar racionalmente justificar nossos atos de crueldade pela palavra divina seria mais um ato de má fé do que um ato religioso.
Mas qual era o motivo de as crueldades serem tão aceitas em sua época? Neste ensaio, como em Da educação das crianças, Montaigne fala da importância da educação. Educam-se as crianças para o saber, quando seria mais adequado ensiná-las a admitir sua ignorância. Instaurado o desejo de afastar-se da ignorância, cria-se homens fáceis de serem persuadidos por qualquer opinião – pois, neste caso, o que interessa é posicionar-se, e a qualquer custo.
Desta forma, Montaigne apropria-se do método de pesquisa do ceticismo antigo (principalmente o de Cícero e Sexto Empírico). Frente a teorias divergentes, porém de igual força de convencimento,  tais céticos suspendiam o juízo; ou seja, para eles não seria preciso precipitar-se em escolher alguma delas, mas continuar pesquisando. Valendo-se deste ceticismo, Montaigne defende que, por mais que autores como Jean Bodin possam ter bons argumentos (racionalmente aceitáveis e baseados na experiência), sempre é possível que existam outros tão bons quanto. Sendo assim, quando Montaigne diz ser contra a pena de morte para os casos em que reste a menor dúvida quanto à  culpa ou grau de culpa dos réus, ele estaria, no fundo, posicionando-se contra a pena de morte para qualquer caso; pois, como afirma neste ensaio, matar um homem a partir de nossas conjecturas tão incertas é pagar um preço muito alto pela vaidade de nossa sabedoria. Pois o que temos de mais valioso não é nossa racionalidade, mas nossa própria vida.
Como não cabe a uma introdução esgotar todas as questões do texto, tentamos aqui apenas apontar algumas questões que consideramos relevantes para a compreensão dele. Cabe agora ao leitor buscar mais material no texto para ampliar a discussão e testar seu próprio julgamento sobre a filosofia, a história e, quem sabe, sobre si mesmo.







 Há dois ou três anos encurtaram o ano em dez dias na França (NOTA 1). Quantas mudanças deveriam seguir esta reforma! Foi propriamente mover o céu e a terra ao mesmo tempo. No entanto, nada saiu de seu lugar; meus vizinhos encontram a hora de semear, de colher, a oportunidade de seus negócios; os dias prejudiciais e propícios no mesmo lugar de sempre. Não se sentia o erro no nosso antigo costume e nem se sente a melhoria com essa mudança. Há tanta incerteza em tudo, nossa percepção é tão grosseira, obscura e obtusa. Dizem que esse ajuste poderia se conduzir de maneira menos incômoda: eliminando, segundo o exemplo de Augusto (NOTA 2), durante alguns anos o dia suplementar dos anos bissextos, que de qualquer maneira é um dia de embaraço e confusão, até que chegássemos a compensar exatamente essa diferença - o que nem mesmo foi feito por essa correção, e permanecemos ainda com alguns dias de atraso. E também, do mesmo modo, poderiam ter se prevenido quanto ao futuro, organizando, após a decorrência deste ou daquele número de anos, que este dia extraordinário seria sempre apagado, de tal forma que nosso erro de cálculo não poderia daí em diante exceder vinte e quatro horas. Não temos outra medida de tempo que não os anos. Há tantos séculos que o mundo se serve dessa medida; e mesmo assim ainda não fomos capazes de fixá-la totalmente, tal que ficamos incertos todos os dias sobre qual forma as outras nações lhe deram, diferente da nossa, e como costumavam aplicá-la. O que pensar do que dizem alguns, que os céus se comprimem em nossa direção quando envelhecemos e nos coloca na incerteza das horas e dos dias? E dos meses, o que diz Plutarco (NOTA 3), que ainda no seu tempo a astrologia não conseguia determinar o movimento da lua? Em que boa condição estamos para manter o registro das coisas do passado!
Estava devaneando, como faço frequentemente, sobre como a razão humana é um instrumento livre e vago. Vejo habitualmente que os homens ocupam-se mais em buscar a razão dos fatos que lhes são propostos do que em procurar saber se são verdadeiros. Eles deixam as coisas e se põem a tratar das causas. Engraçados causadores! O conhecimento das causas pertence somente àquele que tem o governo das coisas, não a nós que apenas as suportamos e usamos plenamente de acordo com nossa natureza, sem penetrar sua origem e essência. Nem o vinho é mais prazeroso àquele que conhece seu processo de fabricação. Ao contrário, tanto o corpo quanto a alma interrompem e alteram o direito que têm ao uso do mundo ao mesclarem a pretensão de ciência. O determinar e o saber, assim como o dar pertencem à regência e à maestria; à inferioridade, sujeição e aprendizagem, cabe aceitar e apreciar. Voltemos ao nosso costume. Passamos por cima dos fatos, mas examinamos curiosamente suas consequências. Habitualmente começamos assim: “Como é que isso acontece?” Seria preciso antes perguntar: “Mas isso realmente acontece?” Nossa razão é capaz de criar vários mundos e descobrir-lhes os princípios e a ordenação; não precisa nem de matéria, nem de fundamento; deixe-a correr: constrói bem tanto no vazio quanto no pleno, tanto na ausência quanto na presença de matéria,
dare pondus idonea fumo. [Que dá peso à fumaça.]
Acho que em quase tudo seria preciso dizer: “Não é nada disso” e usaria frequentemente essa resposta; mas não ouso, pois eles gritam que é uma fuga produzida por fraqueza de espírito e por ignorância. E eu me sinto obrigado, na maior parte das vezes, a atuar em conversas que tratam de assuntos e contos frívolos de que descreio inteiramente. Além disso, em verdade, é um pouco rude e provocativo negar totalmente algo que é afirmado sobre um fato. E poucas pessoas deixariam, notadamente com relação às coisas sobre as quais é difícil de se persuadir, de afirmar o que viram ou de invocar testemunhas cuja autoridade calaria nossa contestação. Seguindo esse costume, sabemos os fundamentos e as causas de mil coisas que nunca existiram; e o mundo se debate em mil questões das quais os prós e os contras são falsos. Ita finítima sunt falsa veris, ut in praecipitem locum non debeat se sapiens committere.” [As coisas falsas são tão parecidas com as verdadeiras que o sábio não deve se arriscar em terreno tão precipitoso.] (Cícero, Acadêmicos, II,XXI)
A verdade e a mentira têm suas faces conformes, porte, gosto e aspectos semelhantes: nós as olhamos com os mesmos olhos. Penso que não somos apenas frouxos em defender-nos do engano, como também procuramos e nos propomos enredar-nos nele. Gostamos de nos envolver com o que é vão, como algo conforme ao nosso ser.
Vi o nascimento de vários milagres na minha época. Ainda que se sufoquem ao nascer, nós não deixamos de prever o caminho que percorreriam se tivessem vivido toda a vida. Pois somente é preciso encontrar a ponta do fio para desenrolarmos o quanto quisermos. E há mais distância entre nada e a menor coisa do mundo do que há entre esta e a maior. Ora, os primeiros que são alimentados com esse começo de estranheza, vindo a semear sua história, sentem, a partir das oposições que lhes são feitas, onde está a dificuldade da persuasão e vão preenchendo esse lugar com algum dado falso. Além disso, insita hominibus libidine alendi de industria rumores” [Pelo prazer inato aos homens de espalhar rumores.], nós naturalmente hesitamos em devolver o que nos é emprestado sem algum juro e acréscimo de nossa parte. Primeiramente o erro particular faz o erro público e depois, por sua vez, o erro público faz o erro particular. Assim vai toda essa construção, se modelando e formando de mão em mão; de maneira que a testemunha mais distante é melhor instruída que a mais próxima, e a última informada é mais persuadida que a primeira. É um progresso natural. Pois qualquer um que acredite em alguma coisa, considera que é obra de caridade persuadir um outro disso; e, para tanto, não teme acrescentar mais da sua invenção, tanto quanto acredite ser necessário em seu favor, a fim de suprimir a resistência ou falha que pensa existir na concepção do outro.
Eu mesmo, que dou singular importância a não mentir e que não me preocupo em dar credibilidade e autoridade ao que digo, percebo em mim, todavia, quanto aos propósitos que tenho em mãos, que estando inflamado ou pela resistência de outro ou pelo próprio calor da narração, aumento e inflo meu assunto por meio da voz, gestos, vigor e força das palavras e, ainda, por extensão e amplificação, não sem prejuízo à verdade pura. Mas o faço em tal condição que, ante o primeiro que me repreende e me pede a verdade nua e crua, deixo de lado imediatamente meu esforço, e a entrego a ele sem exageros, sem ênfase e sem enchimento. A fala viva e barulhenta, como a minha habitualmente é, se entrega voluntariamente à hipérbole.
Não há nada a que comumente os homens sejam mais propensos que dar vazão a suas opiniões; quando nos falham os meios habituais, adicionamos o comando, a força, o ferro e o fogo. É uma infelicidade que estejamos reduzidos a um ponto tal que o melhor critério de verdade seja o imenso número de crentes, quando o número de tolos na multidão supera em muito o número de sábios. “Quasi veró quidquam sit tam valdè, quàm nil sapere vulgare.” [Como se não houvesse algo tão comum quanto a ausência de bom senso.] (Cícero, De Divin,II, XXXIX) Sanitatis patrocinium est, insanientium turba.” [É a defesa da sanidade, pela multidão insana.] (Santo Agostinho, Cidade de Deus, VI, X). É difícil manter o julgamento contra as opiniões comuns. A primeira persuasão, extraída do próprio assunto, se apodera dos simples; dali se expande até os mais hábeis, sob a autoridade do número e antiguidade dos testemunhos. Quanto a mim, se não acredito em um testemunho, ainda não acreditarei em cem deles; tampouco julgo as opiniões pela sua idade.
Há pouco tempo um de nossos príncipes (NOTA 4), a quem a gota fez perder a beleza natural e a amabilidade, deixou-se persuadir fortemente pelo relato que se fazia das maravilhosas operações de um sacerdote que, por meio de palavras e gestos, curava todas as doenças. O príncipe fez uma longa viagem para ir ao encontro desse sacerdote que, pela força da imaginação, persuadiu-o e lhe amorteceu as pernas por algumas horas, de tal forma que obteve delas o serviço que tinham desaprendido há muito tempo. Se a sorte tivesse acumulado cinco ou seis de tais eventos, eles seriam capazes de dar vida a este milagre. Encontrou-se, desde então, tanta simplicidade e tão pouca arte no arquiteto de tais obras que o julgaram indigno sequer de punição. Como também se faria se a maior parte das coisas fossem estudadas na sua origem. Miramur ex intervallo  fallentia.” [Admiramos as coisas cuja distância nos engana.] Assim, à distância nossa visão frequentemente representa imagens estranhas que desaparecem ao nos aproximarmos delas. “Numquam ad liquidum fama perducitur.” [Nunca a fama se atém à verdade.]
É espantoso de quantos vãos começos e frívolas causas nascem habitualmente tão famosas opiniões; é isso que dificulta a investigação sobre elas. Pois enquanto procuramos causas e fins fortes e importantes e dignos de tão grande renome, perdemos as verdades; elas escapam de nossa vista por sua pequenez. E para a verdade requer-se um inquiridor muito prudente, atencioso e sutil em tais buscas, imparcial e sem ideia pré-concebida. Até esse momento, todos esses milagres e eventos estranhos ocultam-se diante de mim. Não vi no mundo monstro ou milagre mais explícito que eu mesmo. Habituamo-nos a toda estranheza pelo uso e pelo tempo; quanto mais convivo comigo e me conheço, mais minha deformidade me espanta e menos eu me entendo.
O principal direito de dar crédito e divulgar tais acidentes é reservado à sorte. Passando anteontem por um vilarejo a duas léguas de minha casa, encontrei o lugar ainda inflamado por um milagre que acabara de se mostrar falso, pelo qual a vizinhança havia se interessado por muitos meses e as pessoas das províncias vizinhas começavam a se agitar e acorrer em grandes grupos de diferentes condições sociais. Uma noite, um jovem do lugar se divertia em sua casa imitando a voz de um espírito, pensando somente em desfrutar de uma brincadeira momentânea. Saindo-se nisso um pouco melhor do que esperava, para estender sua farsa e impulsioná-la, associou-se a uma moça do lugar,  estúpida e simples; e no final já eram três, de mesma idade e inteligência semelhante; e de pregações domésticas passaram a pregações públicas, escondendo-se sob o altar da igreja, falando apenas à noite e proibindo que se levasse qualquer luz até lá. De palavras que tendiam à conversão do mundo e da ameaça do dia do julgamento (assuntos cuja autoridade e reverência escondem melhor a impostura), chegaram a visões e movimentos que, de tão ingênuos e ridículos, não se encontraria nada de tão grosseiro nem mesmo em brincadeira de criancinhas. Contudo, se a sorte quisesse favorecê-los um pouco, quem sabe até onde os teria levado esse fingimento? Estes pobres diabos estão agora na prisão e sofrerão provavelmente a pena pela tolice comum; e não sei se algum juiz não se vingará neles pela sua própria tolice. Neste caso, que foi desvendado, vemos com clareza, mas em casos semelhantes que ultrapassam o nosso conhecimento, sou da opinião de que suspendamos nosso juízo, tanto para rejeitar como para aceitar.
Muitos abusos são gerados no mundo, ou para falar mais audaciosamente, todos os abusos do mundo são gerados pelo fato de que nos ensinam a ter medo de assumir a nossa ignorância e somos obrigados a aceitar tudo o que não podemos refutar. Nós falamos de todas as coisas de forma imperativa e dogmática. O estilo jurídico de Roma determinava que mesmo o que uma testemunha depusesse ter visto com seus próprios olhos, e que um juiz decidisse pela sua mais segura ciência, fosse concebido nesta forma de falar: Parece-me. Fazem-me odiar as coisas verossímeis quando me são apresentadas como infalíveis. Gosto destas palavras que atenuam e moderam a temeridade de nossas proposições: por ventura, de modo algum, algum, dizem, penso e etc. E se eu tivesse tido que educar crianças eu lhes teria ensinado esta forma de responder, questionadora e não irresoluta: O que isso quer dizer? Eu não o entendo, poderia ser, é verdade? Antes eles tivessem mantido a forma de aprendizes aos sessenta anos do que agir como doutores aos dez, como fazem. Se queremos curar a ignorância, é preciso confessá-la. Iris é filha de Thaumantis (NOTA 5). O espanto é fundamento de toda filosofia; a investigação, o progresso; a ignorância, o fim. Mas em verdade, há alguma ignorância forte e generosa que não deve nada em honra e coragem à ciência (NOTA 6). E há tanta ciência em conceber essa ignorância como em conceber a própria ciência.
Vi em minha infância um processo que Corras, conselheiro de Toulouse, mandou publicar sobre um estranho incidente de dois homens que se faziam passar um pelo outro(NOTA 7). Lembro-me (e só disso me lembro) de que me pareceu que Corras julgara a impostura daquele que ele considerou culpado tão espantosa e excedendo de tal modo o nosso conhecimento e o seu próprio, como juiz, que considerei muito ousada a sentença que o condenara à forca. Admitamos – mais livre e ingenuamente do que fizeram os Areopagitas (NOTA 8) que, achando-se pressionados por uma causa que não podiam explicar, ordenaram que as partes retornassem após cem anos – uma forma qualquer de sentença que diga “A corte não está entendendo nada” (NOTA 9).
As feiticeiras de minha vizinhança correm risco de vida dependendo da opinião de cada novo autor (NOTA 10) que venha a dar corpo aos seus sonhos. Para acomodar os exemplos que a palavra divina nos oferece de tais coisas, exemplos tão certos e inquestionáveis, e associá-los a nossos acontecimentos modernos, uma vez que deles não vemos nem as causas nem os meios, é necessário outra inteligência que não a nossa. Pode ser que só caiba ao testemunho do todo-poderoso nos dizer: “Este aqui e esta são e, aquele não.” Nisso, devemos acreditar em Deus, é de verdade uma boa razão; porém não um dentre nós, que se espanta com sua própria narração (e necessariamente ele se espanta com ela, se não estiver fora de juízo), quer a empregue a atos de outrem, falando de outro feiticeiro que não ele mesmo, quer a empregue contra si mesmo.
Sou difícil de convencer e me apego um pouco ao concreto e ao verossímil, evitando as antigas reprovações: “Majorem fidem homines adhibent iis qua non intelligun.” [Os homens dão mais fé àquilo que não compreendem.]  _ “Cupidine humani ingenii libentius obscura creduntur.” [Uma tendência natural da mente humana a crer em coisas obscuras.] Vejo bem que nos enfurecemos e que me proíbem de duvidar dessas coisas sob pena de injúrias execráveis. Nova forma de persuadir! Graças a Deus, minha crença não se maneja a socos. Que censurem aqueles que acusam sua opinião de falsidade; eu a acuso somente de ousadia e de ser difícil de se acreditar, e condeno a afirmação oposta, assim como eles o fazem, senão tão imperiosamente quanto eles. Videantur sane, ne affirmentur modo. [Que estas coisas sejam propostas como prováveis, mas que de modo algum sejam afirmadas.] (Cícero, Questões Acadêmicas, II,XXVII.) Quem estabelece seu discurso como um desafio e como um comando, mostra que sua razão é fraca. Em uma disputa verbal e escolástica, talvez eles tenham tanta aparência de razão quanto seus objetores; mas na consequência efetiva que tiram disso, estes últimos têm mais vantagem. Para matar as pessoas é preciso uma clareza luminosa e limpa sobre seus atos; e nossa vida é demasiadamente real e essencial para servir de garantia a esses eventos sobrenaturais e fantásticos. Quanto a drogas e venenos, eu os coloco fora de minha consideração: são homicídios, e da pior espécie (NOTA 11). No entanto, mesmo nisso dizemos que nem sempre é preciso ater-se à confissão dos feiticeiros porque os vimos, às vezes, confessar haver matado pessoas que se encontravam saudáveis e vivas.
Nessas outras acusações extravagantes, eu diria que é bem razoável que um homem, não importando sua reputação, seja acreditado naquilo que é humano; quanto ao que está fora de seu entendimento e é um efeito sobrenatural, somente deve ser acreditado quando uma autoridade sobrenatural o aprovar. Este privilégio que Deus consentiu em dar a alguns de nossos testemunhos não deve ser aviltado e comunicado levianamente. Tenho os ouvidos cansados de mil histórias: três pessoas viram alguém em determinado dia no lado nascente; três o viram no dia seguinte no ocidente, a determinada hora, em determinado lugar, vestido assim. Certamente nem eu acreditaria em mim mesmo. Quanto a mim, penso ser mais natural e mais verossímel que dois homens mintam que um só passe em doze horas do oriente ao ocidente como o vento! Quanto mais natural é nosso entendimento ser levado pela volúpia de nosso espírito desequilibrado, que um de nós ser carregado, em carne e osso, sobre uma vassoura ao longo de uma chaminé por um espírito estranho! Não procuremos ilusões de fora e desconhecidas; nós, que somos perpetuamente agitados por nossas próprias ilusões domésticas. Parece-me que é perdoável não acreditar no sobrenatural, ao menos na medida em que seja possível desviar e evitar a sua verificação por meio natural. E sou da opinião de Santo Agostinho, de que vale mais tender para a dúvida que para a certeza nas coisas de difícil comprovação e crença perigosa.
Há alguns anos, passei pelas terras de um príncipe soberano, o qual, em meu favor e para abater a minha descrença, concedeu-me a graça de me fazer ver em sua presença, em lugar particular, dez ou doze prisioneiros dessa natureza, e entre outros uma velha, realmente bruxa em feiúra e deformidade, muito famosa de longa data nessa profissão. Vi provas e livres confissões e uma tal marca insensível naquela velha miserável, a tal marca de Satã (NOTA 12), e perguntei e falei tudo o que quis, prestando atenção nisso o mais que podia; e não sou o tipo de homem que deixa o juízo preso a preconceitos. No final e em plena consciência, eu lhes teria antes receitado heléboro que cicuta. (NOTA 13)Captisque res magis mentibus, quám consceleratis similis visa.” [O caso deles me parecia mais próximo da loucura que do crime.] (Tito Lívio, VIII, XVIII). A justiça tem suas próprias correções para tais doenças.
Quanto às objeções e aos argumentos que homens honestos me apresentaram, aqui e frequentemente em outros lugares, nada ouvi que me tenha convencido e que não admita solução mais verossímel que suas conclusões. É verdade que eu não desato as provas e razões que se fundamentam na experiência e no fato; também elas não têm ponta; eu as corto frequentemente, como Alexandre cortou seu nó (NOTA 14). Afinal de contas, cozinhar um homem vivo com base em suas conjecturas é dar valor demasiado a elas. Narram-se diversos exemplos, e Prestâncio conta o de seu pai, que, entorpecido e adormecido mais profundamente que um sono normal, fantasiou ser um jumento e servir de burro de carga a soldados. E o que fantasiava o era. Se os feiticeiros sonham assim materialmente, se às vezes os sonhos podem de fato incorporar-se, ainda não creio que nossa vontade deva responder por isso perante a justiça.
O que digo, eu o faço como alguém que não é juiz nem conselheiro de reis, e que não se considera digno de o ser, mas sim um homem do povo, nascido e criado para obedecer à razão pública, tanto em seus feitos como em seus ditos. Quem levasse em conta meus devaneios, em prejuízo da mais mísera lei de seu vilarejo, ou opinião, ou costume, faria tão grande mal a si quanto a mim. Porque não dou garantia do que digo, senão de que é isso o que tinha naquele instante em meu pensamento, pensamento desordenado e vacilante. É pela conversa que falo de tudo e falo sobre nada por meio de opiniões. “Nec me pudet, ut istos, fateri nescire quod nesciam.” [Eu não tenho vergonha, como essas pessoas, de confessar que ignoro o que ignoro.] Eu não seria tão ousado no falar se me coubesse ser acreditado; e foi isto o que respondi a um grande que se lamentava da aspereza e do ardor de minhas exortações: Sentindo-te inclinado e preparado de uma parte, exponho-te a outra com todo o cuidado que posso, para esclarecer o teu julgamento, não para amarrá-lo; Deus sustenta teus sentimentos e te fornecerá escolhas. Não sou tão presunçoso a ponto de desejar que apenas minhas opiniões inclinem para algo de tamanha importância – minha sorte não as endereçou a tão poderosas e elevadas decisões. É verdade que não tenho apenas modos de ser em grande número, mas também opiniões em excesso, das quais pouparia meu filho, se o tivesse. Que mais dizer, se as mais verdadeiras não são sempre as mais acomodadas ao homem, tão selvagem é sua composição! (NOTA 15)
A propósito ou fora de propósito, não importa, diz-se na Itália, um provérbio comum, que não conhece Vênus em sua perfeita doçura aquele que não se deitou com uma manca. O acaso, ou algum evento particular, colocou há muito tempo essas palavras na boca do povo; e isso se diz tanto dos machos como das fêmeas. Pois a rainha das amazonas respondeu ao cita que a convidava ao amor: [Το αβάσιμο και ο οποίος κάνει καλύτερα],”o manco o faz melhor” (Erasmo, Adágios, II, IX,49). Naquela república feminina, para fugir da dominação dos machos, elas os aleijavam desde crianças, braços, pernas e outros membros que lhes dessem vantagens sobre elas; e serviam-se deles somente do que nós aqui nos servimos delas. Eu teria dito que o movimento irregular da mulher manca traz um novo prazer à tarefa e alguma ponta de doçura àqueles que a experimentam, mas acabo de saber que mesmo a filosofia antiga já tinha decidido: como as pernas e coxas das mancas não recebem, devido à sua imperfeição, o alimento que lhes é devido, as partes genitais que estão acima tornam-se mais cheias, nutridas e vigorosas. Ou então que, como esse defeito impede o exercício, os coxos dispensam menos força e chegam com mais vigor aos jogos de Vênus. É também a razão pela qual os gregos descreviam as tecelãs como mais fogosas que as outras mulheres: devido ao trabalho sedentário que faziam, sem grande exercício físico. A este preço, do que não podemos falar? Sobre estas se poderá ainda dizer que o estremecimento que o seu trabalho lhes dá, assim sentadas, as desperta e solicita assim como fazem o movimento e o tremor das carruagens com as damas.
Esses exemplos não podem servir ao que eu dizia no início? Que as nossas razões antecipam frequentemente o fato, e têm a extensão  de sua jurisdição tão infinita que elas julgam e se exercem mesmo na inanidade e sobre o não-ser? Além da flexibilidade de nossa invenção para forjar razões para todo tipo de fantasias, nossa imaginação tem igualmente facilidade para receber impressões da falsidade por aparências bem frívolas. Pois somente pela autoridade do uso antigo e popular desse provérbio fui antes levado a crer que recebi mais prazer de uma mulher porque ela era deformada, o que pus na conta de suas graças.
Torquato Tasso, na comparação que faz entre França e Itália, diz ter notado isto, que temos as pernas mais finas que as dos cavalheiros italianos, e atribui a causa disso ao fato de que estamos continuamente a cavalo; com base no mesmo fato, Suetônio tira uma conclusão totalmente contrária: pois ele diz, ao inverso, que Germânico engrossou as suas pela continuação do mesmo exercício. Não há nada tão maleável e desregrado quanto nosso entendimento: é o sapato de Terâmenes, bom para todos os pés (NOTA 16). E ele é duplo e diverso, e as matérias, duplas e diversas. “Dá-me uma dracma de prata”, dizia um filósofo cínico a Antígono. “Não é um presente de rei”, respondeu Antígono. “Dá-me então um talento”, pediu o cínico. “Não é presente para um cínico”, replicou Antígono.
Seu plures calor ille vias et caeca relaxat 
Spiramenta, novas veniat qua succus in herbas;
Seu durat magis et venas astringit hiantes, 
Ne tenues pluviae, rapidive potentia solis 
Acrior, aut Boreae penetrabile frigus adurat.
[Seja que este calor abra novos caminhos e poros secretos por onde sobe a seiva nas ervas novas, seja que ele torne a terra mais dura e estreite suas veias, e assim  a protege contra as chuvas finas, contra os ardores do sol ou contra o frio penetrante do Boreal.] (Virgílio, Georg., I, 89.)
 “Ogni medaglia ha il suo riverso”. [Toda medalha tem seu reverso.] Eis por que Clitômaco dizia antigamente que Carnéades tinha superado os trabalhos de Hércules, por ter arrancado dos homens o consentimento, isto é, a opinião e a leviandade de julgar. Essa fantasia de Carnéades, tão vigorosa, nascera antigamente, na minha opinião, em razão do cinismo daqueles que fazem profissão de saber e de suas pretensões desmedidas. Colocaram Esopo à venda juntamente com dois outros escravos. O comprador perguntou ao primeiro destes o que sabia fazer; ele, para valorizar-se, respondeu montes e maravilhas, que sabia isto e aquilo; o segundo respondeu de si tanto ou mais; quando chegou a vez de Esopo e lhe perguntaram também o que sabia fazer: “nada, pois esses aí já fizeram tudo; eles sabem tudo”, respondeu. Assim aconteceu na escola da Filosofia: o orgulho daqueles que atribuíam ao espírito humano a capacidade de todas as coisas causou em outros, por despeito e rivalidade, a opinião de que não se é capaz de nada. Alguns sustentam com base na ignorância este mesmo extremismo que outros sustentam na ciência – e fazem isso a fim de não podermos negar que o homem é imoderado em tudo e  que seu limite é apenas o da necessidade e impotência de ir além.  

NOTA 1
A mudança do calendário Juliano ou antigo para o calendário Gregoriano ou moderno, promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582 , não teve lugar ao mesmo tempo em todo o mundo, o que causa uma certa confusão na harmonização de datas e na datação de eventos entre os séculos XVI e XX. Para implantação do novo calendário na França, foram omitidos dez dias: 9 de Dezembro de 1582 foi seguido de 20 de Dezembro de 1582.
NOTA 2
O calendário Juliano foi modificado no ano 8 d.C. pelo imperador romano Augusto, que alterou a regra de inclusão do dia extra, de três em três para quatro em quatro anos.
NOTA 3
Plutarco (46 a 126 d.C.), filósofo e prosador grego que estudou na Academia de Atenas (fundada por Platão) afirmou:Mas não devemos seguir o cálculo exato do número de dias, nem fazer deduções ou aproximações; considerando que, mesmo agora, quando a astronomia já fez tanto progresso, a irregularidade dos movimentos da Lua está ainda além das habilidades dos matemáticos, e continua a iludir os seus cálculos.” (Plutarco, Moralia, Questões Romanas, 24, 269D).
Movimentos da Lua: Sabemos hoje que a Lua, assim como a Terra, possui um movimento de rotação (em torno de seu eixo) e translação (em torno do Sol). O período de rotação da Lua é igual ao período de translação – 27 dias. Sempre vemos a mesma face, pois a outra é chamada de face escondida. As fases da Lua (cheia, minguante, nova e crescente) são contadas em períodos de uma semana e às quatro fases juntas denomina-se período lunar – quase um mês – nosso calendário está baseado na Astronomia. As fases explicam-se pela posição relativa do Sol, da Terra e da Lua.

Os meses: Sua origem em quase todos os calendários foi as fases lunares. Inicialmente os meses tinham 28 ou 29 dias, mas isso fazia com que o ano tivesse 12,5 meses o que dificultava um agrupamento coerente. Assim, os meses deixaram de ter exatamente o número de dias das fases lunares para que o ano tivesse sempre 12 meses. O mês de fevereiro foi o único a ser preservado para coincidir com o número de dias das quatro fases lunares.















NOTA 4
M. de Nemours, sobrinho de Louise de Sabóia, morto em 1585 e doente de gota desde os trinta e seis anos.














NOTA 5
Na mitologia grega, Thaumantis ou Thaumas é o centauro, pai de Iris. Thaumas significa espanto, admiração. Iris, é a mensageira dos deuses e tem o significado de verdade. A verdade é filha do espanto, da admiração. (Ver PLATÃO, Teeteto. Livro XI,155d)
NOTA 6
“Ciência”– Não no sentido de saber especializado ou sistematizado, mas de saberes em geral.
NOTA 7
Martin Guerre, um camponês francês do século XVI, foi personagem central de um célebre caso de impostura; um homem chamado Arnaud du Tihl, sósia de Martin Guerre, aproveitou-se de uma longa ausência deste para tomar seu lugar, vivendo com sua esposa e filhos por três anos. O falso Guerre foi levado a julgamento, soube responder todas as questões que lhe foram impostas – mesmo as mais íntimas – e foi executado, uma vez que o verdadeiro Martin Guerre retornara à cidade durante o processo. Jean de Corras, membro do parlamento de Toulouse na época, concluiu: “Há grandes razões para pensar que ele [o falso Guerre] tivera um espírito familiar”. O caso continua a ser estudado e dramatizado até hoje.
Curiosidade: há um filme de 1982 que retrata o caso; “Le retour de Martin Guerre” (“O Retorno de Martin Guerre”), dirigido por Daniel Vigne, que traz Gérard Depardieu no papel principal.
NOTA 8
“Juízes do Areópago”: O Areópago era um tribunal de Atenas situado numa colina consagrada a Marte. Diz-se que foi nesse tribunal que primeiro se aplicou a pena de morte. O tribunal se reunia ao ar livre, à noite. Segundo os juízes, assim o acusado não se intimidava com a sua imponente gravidade, e eles não eram influenciados pelas lágrimas e arrependimento. Para que os ouvidos fossem preservados como os olhos, nenhum artifício oratório era permitido para enternecer ou comover. A princípio os acusados defendiam a própria causa. Mais tarde, e para suprir a insuficiência dos seus meios, foi-lhes permitido defensores, mas estes deviam limitar-se a expor simplesmente os fatos sem apelar para a comiseração e a piedade. A integridade desse tribunal era tal que nunca houve qualquer suspeita e nunca um acusado murmurou contra as suas sentenças.
Durante o período democrático, o Areópago cumpria a função de um tribunal constituído por Arcontes que era responsável pelos julgamentos dos crimes de homicídio premeditado, envenenamento e incêndio, dentre outros.

NOTA 9
O Areópago de Atenas teve que julgar um caso em que a esposa assassinou seu segundo marido. Este, com a ajuda de seu filho, teria assassinado o filho do primeiro casamento da esposa. Sem saber como penalizar as partes, o areópago ordenou que todos voltassem vivos ao tribunal cem anos depois. (Esse se tornou um exemplo clássico de casus perplexus, um caso de dificuldade moral máxima.)


 NOTA 10

As obras de demonologia traziam estudos sistemáticos sobre os demônios. Provavelmente essa passagem é uma referência à obra "Demonomania dos feiticeiros" (1580), de Jean Bodin, que defendia a enérgica repressão à feitiçaria.

NOTA 11
As obras de demonologia discutiam o sentido exato de uma passagem específica do livro do Êxodo, XXII, 18 : <<Maleficos non patieris viuere>>; alguns, como Jean Wier (Histórias, discursos e disputas das ilusões e imposturas dos diabos, VI, XXIV), se apoiando na versão grega do livro para sustentar que a lei visava os envenenadores. Montaigne reconhece a plena culpabilidade dos envenenadores. A questão, aqui, reside em saber se existem bruxas, propriamente ditas, e se está ao alcance da inteligência humana o poder de identificá-las.



NOTA 12

Teóricos da bruxaria afirmavam que ter uma marca insensível a agulhas e picadas no corpo confirmava a possessão do demônio. Esse sinal era buscado nos acusados de bruxaria.

NOTA 13
”Heléboro”: planta que curava a loucura, segundo crença antiga. “Cicuta”: planta venenosa

NOTA 14

Nesta passagem Montaigne refere-se ao nó do templo de Górdio,  impossível de dasatar segundo a lenda que remonta ao século VIII a.C. Quem o desatasse conquistaria a Ásia Menor. Alexandre – O Grande (356 a.C. – 323 a.C., percebendo a impossibilidade de desamarrá-lo, o cortou com a sua espada tornando-se assim o senhor da Ásia Menor. É daí que vem a expressão “cortar o nó górdio” que significa resolver um problema complexo de maneira simples e eficiente.
NOTA 15
“Selvagem composição”: comportamento imprevisível, irregular e impulsivo do homem com relação às opiniões verdadeiras.
NOTA 16
”Sapato de Terâmenes”: metáfora de um calçado adaptável tanto ao pé direito quanto ao esquerdo, utilizada para exemplificar a capacidade de adaptar-se às circunstâncias.




























terça-feira, 22 de novembro de 2011

Filmes

O SHOW DE TRUMAN:1998, história que se passa em uma comunidade racionalizada a partir da mais avançada tecnologia. Truman tem sua vida expostas a milhares  de expectadores, tendo sua imagem vinculada ate mesmo em produtos materiais. Sua percepção de realidade é totalmente alterada quando descobre que sua vida não passa de um espetáculo de TV.

O NOME DA ROSA:1980, adaptação para o cinema, da obra do pensador italiano Umberto Eco, uma trama ambientada no século XIII, uma serie de mortes misteriosas, em um mosteiro começam a ser investigadas por um frade, na trama são levantados temas como doutrina cristã, filosofia e ciência e a intolerância da igreja.

A ILHA DO DOUTOR MOREAU: 1997, ficção acerca da idéia do cientista como criados a semelhança de Deus. Em uma isolada ilha, o cientista realiza experimentos de engenharia genética criando seres, apartis de células humanas e animais que são criados por ele.
Mas não são somente esses filmes que selecionei, são mais cinqüenta filmes que terminam de compor a minha pesquisa, a combinação filosofia e tecnologia é bem vinda quando o assunto é metodologia na educação escolar.
Para os professores que não se identificarem com os filmes aqui propostos, pesquisei alguns sites que são ligados somente a filmes relacionados com a filosofia, de maneira que todos os conteúdos possam ter algum filme específico.
O professor deve apenas estar bem atento, quanto a classificação do filme para que ele seja adequado a cada faixa etária, e para que os alunos consigam entender a mensagem que o filmes que o filme quer passar. 

Dinâmicas em grupo

PODER CENTRALIZADO 
OBJETIVO: mostrar que nem sempre ser o único no poder faz bem 
O professor precisará de um pacote pequeno de bexigas. Cada bexiga de uma cor representantando as varias classes sociais. O professor distribuirá uma bexiga para cada participante da dinâmica, não necessita de muitos alunos, uns seis ou sete alunos. 
Os alunos vão começar jogar as bexigas de maneira normal sem deixar que caião, o professor deve retirar os alunos um por um, mas eles devem deixar as bexigas para que os colegas que ainda estão participando da dinâmica cuidem das bexigas de quem saiu, não vale deixar cair. 
A essa altura os alunos restantes na dinâmica já deixaram algumas bexigas cair no chão 
O professor vai retirar os alunos até restar apenas um, vai ficar impossível para o último aluno cuidar de todas as bexigas ao mesmo tempo. 
O professor finaliza a dinâmica explicando aos seus alunos que quando a sociedade e organizada e todos participam desse organização é mais fácil deixar as coisas em seus devidos lugares, mais quando, apenas um se encarrega por controlar tudo, fica difícil, organizar a sociedade e geralmente muitas coisas não dão certo.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Músicas

E ai galera, para iniciar a postagem de dinâmicas foram relacionadas algumas músicas, acompanhadas por suas respectivas mensagens e sugestões de filósofos a serem relacionadas. 


Miséria S/A, pela banda O Rappa

Fala sobre pobreza e desigualdade social, e a separação de classes, e sobre os problemas que causa o capitalismo, ninguém melhor que Marx para explicar o assunto.

Gita, por Raul Seixas
Pode ser relacionada ao inicio da filosofia, passagem do mito para a realidade, e os pré-socráticos.

Segredos, por Frejat
Fala sobre amor, e pode ser utilizada juntamente com Platão e a obra o banquete.

Estado Violência, pela banda Titãs
Mostra o poder do estado e a relação agonizante do individuo, trabalhar com filosofia política. 

sábado, 20 de agosto de 2011

Breve...

Atenção alunos!
Em breve estaremos disponibilizando alguns materiais de alta qualidade reunidos pela responsável de pesquisas do PIBIC_EM, Juliana. O material será composto por sugestões de filmes, musicas e dinâmicas  para serem usadas em sala de aula pelos professores.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Apresentação dos seminários - 3ºA.



Apesar do nervosismo, todos conseguiram fazer uma excelente apresentação. 











Um agradecimento mais que especial a professora Rejane, que organizou os seminários e que está sempre trazendo novos métodos de ensino para a sala de aula, otimizando a aceitação e compreensão da filosofia nas salas de aula de nosso colégio. 


Post By: Giovanne Momesso - Blog Master.